6/28/2007

210



O vermelho da carne quase viva, quase esquecida do prazer escondido debaixo de um peito duro onde se encerra um coração quase esquecido de galopar. A tontura do regresso à liberdade após o sono injusto que se tornou num quadro único sem lugar a memórias. O desgastar dos músculos que alegremente reconhecem a exaustão avisados pelo suor que reencontra os caminhos sequiosos dos troncos abandonados por uma seca demasiado eterna. O calor insuportável mas suportável pelo prazer de olhar o degelo de um corpo mantido na mais baixa temperatura a que a emoção consegue descer. A voz, aquela voz que não fala mas solta música pelos gemidos de uma garganta onde o som deixou de passar. (Oldmirror)

Só tenho três desejos agora, comer, dormir e foder. Os cabarets excitam-me. Apetece-me ouvir música rouca, ver caras, roçar-me em corpos, beber um ardente Benedictine. Mulheres belas e homens atraentes despertam ardentes desejos em mim. Quero dançar. Quero drogas. Quero conhecer pessoas perversas, ser íntima delas. Nunca olho para caras ingénuas. Quero morder a vida e ser despedaçada por ela. Henry não me dá tudo isso. Eu despertei o seu amor. Que se lixe o seu amor. Ele sabe foder-me como mais ninguém, mas quero mais do que isso. Vou para o Inferno, para o Inferno, para o Inferno. Selvagem, selvagem, selvagem
- Anaïs Nin

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6/27/2007

209


Delzira fora feita entre as duras escarpas do Douro. Crescera ao ritmo da vinha, sofrera como as colheitas em anos onde o vinho apenas nasce por milagre, vivera à velocidade de um rio que acaricia as margens, onde morava, antes mesmo de partir até à Foz. Delzira via os combóios que um dia a levariam ao Porto, a cidade que roubara o nome ao vinho que a vira crescer e que acabaria por roubar a liberdade dos seus sentidos apurados entre sucalcos em nome de um amor. Delzira envelhecera, não esquecera o Douro, mas os sentidos feitos de uva e de xisto, de verde e de água, de sol e de Inverno, nunca mais conheceram a casa onde nasceram. Delzira perdera tudo, quase tudo, e em breve morreria sem que a brisa do Douro a pudesse espalhar pelas terras onde a vindima que chegasse a pudesse também saborear, sem que o ano da sua morte não fosse de colheita para esquecer. Delzira perdera a visão, mas pouco se importara que se fizesse escuridão no Porto, pois fora escuridão que sempre o Porto lhe trouxera, chegava-lhe a cegueira que essa não lhe rouba a memória. Delzira morreu no Porto, o Porto que lhe roubou tudo, quase tudo, até o amor. Na terra que a obrigou a ficar longe, a trocar o suor da dureza de uma vida pelas lágrimas do sofrimento de uma vida. Delzira morreu no Porto, o Porto que lhe roubou tudo, quase tudo, menos a memória, menos a imagem daquele Douro de onde nunca quisera verdadeiramente sair e onde sempre quisera morrer. (Oldmirror)
Às vezes, passo horas inteiras
Olhos fitos nestas Traseiras,
Sonhando o tempo que lá vai;
E jornadeio em fantasia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pai...
.
...Ó Portugal da minha infância,
Não sei que é, amo-te a distância,
Amo-te mais, quando estou só...
Qual de vós não teve na Vida
Uma jornada parecida,
Ou assim, como eu, uma Avó?
- António Nobre

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6/21/2007

208


Mãos que sabiam a tarde de maçã, a bife na chapa, mãos que se mexiam vagarosamente, mão sofridas e, no entanto, tão macias, mãos que me faltam. As mãos que mais sofreram foram as últimas a desistir, mãos que na despedida não tive coragem de apertar com as minhas, mãos que no fim foram olhos, foram extensão do coração, foram traduções de sentimentos na despedida anunciada. (Oldmirror)
Lembro-me da minha mão pousada sobre a tua
e esse instante está debaixo
da palavra solidão.
- José Luís Peixoto

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6/14/2007

207



"Segue-me à luz", pedira ela disposta a fazê-lo abandonar a noite onde há demasiado tempo se encerrara. "Fa-lo-ei, se vieres à escuridão dar-me a mão", respondera-lhe ele certo de que ela nunca aceitaria fechar os olhos e estender o braço. Ela fê-lo. Ofereceu-lhe, a mão, o braço, o corpo sem hesitar, sem saber sequer a quem se destinavam. Passaram-se demasiados Invernos, muitos Outonos, algumas Primaveras e poucos Verões. A noite passara a ser a morada, o local onde respirar fazia sentido. Chegara o momento. "Estou pronto, seguir-te-ei agora mesmo à luz que me quiseste dar", disse-lhe ele reconhecido. "Não, segui-te à escuridão, ficarei nela, prefiro-a agora", respondeu-lhe ela, decidida a nunca mais querer o dia. Ele sorriu, sentiu-se aliviado e ofereceu-lhe a mão, o braço, o corpo. (Oldmirror)

E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.
- Haruki Murakami

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6/07/2007

206



19.35 horas. A hora certa para que a luz deixe entrar o brilho de um olhar há muito perdido no cinzento da mágoa e que agora se mostra de novo. A hora certa para tirar do baú o inevitável e deixar que os caminhos regressem a correr livres no leito de um destino que chegou a estar preso por amarras ao porto dos desgostos. 19.35 horas. O momento em que o relógio avança para os minutos perdidos no tempo e recupera a chave de um quarto atirada ao mar e que o mar devolveu ao sol que agora a entrega nos olhos que voltam a cruzar os olhos (Oldmirror)

Some people hate them, you know. Lovers. Nothing drives them madder than to see two people kissing. Love's an affront. You ever thought about that? Love's an emotion so charged and pure that it can attract a pure and charged hatred. That's why I don't think lovers should love in public. Some people have murder in their eyes when they see lovers, but somewhere out there is a person so disappointed with their life, so full of self-contempt, they're carrying murder in their pocket. A gun to blow away lips that were blowing kisses. (Imitates a gun) Pyeach! Pyeach! 'Put that tongue back in your mouth, lover!' Pyeach! Pyeach! 'Put them arms down by your sides, lover!' Pyeach! Pyeach! 'Wipe that shine from your eyes, lover! Who gave you the right to be happy when I'm not?' Pyeach! Pyeach! So drink up, lovers. Here you can hold hands, gaze at each other, touch and blow kisses. In my restaurant you're safe. Drink! - Arnold Wesker

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6/01/2007

205

Quase sem aviso, foram fechando as malas e partiram. Dentro das malas levaram tanto da minha alma que ainda hoje temo respirar mais forte com medo que o resto acompanhe o vento onde vos sinto. Dentro das malas levaram-me o único sorriso indefeso e confortável e deixaram-me o vazio de uma máscara a que estou condenado a usar por não vos ter para que pudesse descansar a guarda, baixa-la por uns momentos, repousar por uns segundos, esquecer-me quão duro tem sido caminhar sem que na rua ao lado estivesse a casa segura, a casa onde o tempo caminhava com tempo. (Oldmirror)

Ao final da tarde,
as pedras morrem como
se fossem feitas de
história...
- Jorge Vicente

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