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I. Entretidos na arte de esquecer, esquecemo-nos de reparar, de olhar em volta, de cruzar sensações, vontades. Procuramos receitas, aceitamos lições, experimentamos mezinhas e visitamos curandeiros. Pagamos para esquecer mesmo que para isso nos esqueçamos de viver.
II. Subira e descera as escadas inúmeras vezes. A impaciência tinha tomado conta daquele corpo agitado pela descoberta que fizera. Finalmente, saberia como esquecer. Encomendara a fórmula mágica e esperava agora que a campaínha tocasse e lhe fosse entregue em mãos aquilo que resolveria os dias sempre cinzentos que se haviam instalado de forma quase permanente. A fórmula mágica fez-se anunciar do outro lado da porta, era chegado o momento. Enquanto ia ao seu encontro interrogava-se como seria viver depois de esquecer. Já se havia esquecido. É lugar comum dizer-se que nos habituamos a viver com a dor. Se com ela vivemos demasiado tempo, viver sem ela assemelha-se a voltar a aprender a andar. Viver depois de esquecer tinha sido esquecido e isso estava prestes a acabar. A porta abriu-se e o braço esticou-se para receber o envelope da fórmula mágica que tudo faria esquecer. Recebeu-o e, de imediato, iniciou a leitura, ali mesmo.
- Preciso que assine aqui... - disseram do outro lado.
Nessa altura já se havia esquecido que a porta estava aberta e que o mensageiro ali permanecia. Nesse momento, a pele perdera a cor, as pernas tremiam e os olhos espelhavam uma gigantesca desilusão. Afinal, já conhecia a fórmula mágica. Tudo que lia não lhe era desconhecido e nunca havia resultado. Era o fim. Nunca seria possível esquecer.
- Preciso que assine aqui... - repetiram do outro lado.
De ombros caídos, cor perdida e forças inexistentes, desviou os olhos do envelope, entretanto caído ao lado dos pés, levantou a cabeça preparando-se para cumprir o pedido que lhe fora dirigido do outro lado da porta e tudo mudou. O brilho surgiu vindo do nada, a vida pintou-se de cores inventadas num arco-íris secreto, o coração deu sinais de vida e...por muito que tentasse não se lembrava do que queria esquecer. Nunca fora a fórmula secreta.
Não era a mensagem. Era o mensageiro.
- Oldmirror
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Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma.
(…)É preciso aceitar esta mágoa, esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução.
(…)Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
- Miguel Esteves Cardoso [apanhado num "Crime" demasiado "Perfeito"]
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Ou antes, orgulhosamente imperfeito.
não se esquece; apenas paramos de lembrar.
Belos textos!
Bj!