Porque a vontade de me fixar no mais simples ganha força. Porque o interesse pelos pormenores é maior. Porque sempre que os vejo fazem-me sorrir. Porque sempre que foco mais longe, mais quero desfocar o que vejo. Porque sempre preferia cor ao preto e branco, simplesmente porque não há apenas o preto e o branco. Porque se fixar o perto e ele for para longe sempre deixará algo preso em mim. (Oldmirror - 03.10.2004)Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tardepara respirar o ar fresco que vinha do oceano.O sol fundia-se como um leque vermelho no teatroe uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiroe, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agoranão param (as missas). E alegra-me que no mundo existam aindadistâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nomejá não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menosde viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talveznuma fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidezdos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.- Joseph BrodskyEtiquetas: Joseph Brodsky