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- O que me dás para me teres de volta?- Dou-te o corpo, dou-te o sangue, dou-te a vida, dou-te...o coração!- Não chega. Entrega-me também essa felicidade. (Oldmirror)Às vezes se te lembras procurava-teretinha-te esgotava-te e se te não perdiaera só por haver-te já perdido ao encontrar-teNada no fundo tinha que dizer-tee para ver-te verdadeiramentee na tua visão me comprazerindispensável era evitar ter-teEra tudo tão simples quando te esperavatão disponível como então eu estavaMas hoje há os papéis há as voltas a darhá gente à minha volta há a gravataMisturei muitas coisas com a tua imagemTu és a mesma mas nem imaginascomo mudou aquele que te esperavaTu sabes como era se soubesses como éNuma vida tão curta mudei tantoque é com certo espanto que no espelho da manhãdistraído diviso a cara que me restadepois de tudo quanto o tempo me levouEu tinha uma cidade tinha o nome de madridhavia as ruas as pessoas o anonimatoos bares os cinemas os museusum dia vi-te e desde então madridse porventura tem ainda para mim sentidoé ser solidão que te rodeia a tiMas o preço que pago por te tere ter-te apenas quanto poder ver-tee ao ver-te saber que vou deixar de ver-teSou muito pobre tenho só por mimno meio destas ruas e do pão e dos jornaiseste sol de Janeiro e alguns amigos maisMesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejopois sei que dentro em pouco deixarei de ver-teEu aprendi a ver a minha infânciavim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregose penso que se bach hoje nascesseem vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maiorque esta mesma tarde num concerto ouviteria concebido aqueles sweet huntersque esta noite vi no cinema rosalesVejo-te agora vi-te ontem e anteontemE penso que se nunca a bem dizer te vejose fosse além de ver-te sem remédio te perdiaMas eu dizia que te via aqui e acoláe quando te não via dependiado momento marcado para ver-teEu chegava primeiro e tinha de esperar-tee antes de chegares já lá estavasnaquele preciso sítio combinadoonde sempre chegavas sempre tardeainda que antes mesmo de chegares lá estivessesse ausente mais presente pela expectativapor isso mais te via do que ao ter-te à minha frenteMas sabia e sei que um dia não virásque até duvidarei se tu estiveste onde estivesteou até se exististe ou se eu mesmo existipois na dúvida tenho a única certezaTerá mesmo existido o sítio onde estivemos?Aquela hora certa aquele lugar?À força de o pensar penso que nãoNa melhor das hipóteses estou longequalquer de nós terá talvez morridoNo fundo quem nos visse àquela horaà saída do metro de serranosensivelmente em frente daquele barpoderia pensar que éramos reaispontos materiais de referênciacomo as árvores ou os candeeirosTalvez pensasse que naqueles encontrosem que talvez no fundo procurássemoso encontro profundo com nós mesmoshaveria entre nós um verdadeiro encontrocomo o que apenas temos nos encontrosque vemos entre os outros onde só afinal somos felizesIsso era por exemplo o que me aconteciaquando há anos nas manhãs de romaentre os pinheiros ainda indecisosdo meu perdido parque de villa borgheseeu via essa mulher e esse homemque naqueles encontros pontuaisDecerto não seriam tão felizes como neles eupois a felicidade para nós possívelé sempre a que sonhamos que há nos outrosAté que certo dia não sei bemOu não passei por lá ou eles não foramnunca mais foram nunca mais passei por láPassamos como tudo sem remédio passae um dia decerto mesmo duvidamosdia não tão distante como nós pensamosse estivemos ali se madrid existiuSe portanto chegares tu primeiro porventuraalguma vez daqui a alguns anosjunto de califórnia vinte e umque não te admires se olhares e me não viresEstarei longe talvez tenha envelhecidoTerei até talvez mesmo morridoNão te deixes ficar sequer à minha esperanão telefones não marques o númeroele terá mudado a casa será outraNada penses ou faças vai-te emboratu serás nessa altura jovem como agoratu serás sempre a mesma fresca jovem puraque alaga de luz todos os olhosque exibe o sossego dos antigos templose que resiste ao tempo como a pedraque vê passar os dias um por umque contempla a sucessão de escuridão e luze assiste ao assalto pelo soldaquele poder que pertencia à luaque transfigura em luxo o próprio lixoque tão de leve vive que nem dão por elaas parcas implacáveis para os outrosque embora tudo mude nunca mudaou se mudar que se não lembre de morrerou que enfim morra mas que não me desiludaDizia que ao chegar se olhares e não me viresnada penses ou faças vai-te emboraeu não te faço falta e não tem sentidoesperares por quem talvez tenha morridoou nem sequer talvez tenha existido
- Ruy BeloEtiquetas: Ruy Belo

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