2/02/2006

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Pegar na caneta para desenhar uma linha. Hesitar entre o traço recto e o percurso ondulado. Entre o leve e o carregado. Sem saber se a farei desinteressada ou apaixonada. É apenas uma linha mas não sei se longa ou curta. Se sairá borratada ou decidida. Não é fácil começa-la. Mais difícil será termina-la. Peço ajuda ou vou sozinho? Pinto-a contínua ou descontínua? A vermelho sangue, verde esperança, branco tranquilo ou tumultuoso negro? Poderá ser cinzenta? Só queria saber desenha-la. Só gostava de a adivinhar nos seus contornos, na sua forma. O chão enche-se de folhas brancas e de linhas abandonadas. Linhas interrompidas, imperfeitas. A mão, trémula, arrisca de novo já sem a certeza das primeiras vezes. Talvez seja desta, talvez o cuidado e a experiência sejam a chave para a linha ideal. Talvez não, talvez a primeira emoção, o primeiro impulso, a faça melhor. Fecho os olhos, pouso a caneta no branco da folha que já fere o olhar e deixo-me levar pelos sentidos. A caneta não anda, fica parada. Não há sentidos. Penso em desistir. Encosto-me na cadeira vencido por uma linha. Encosto-me na cadeira sem saber desenhar a minha vida. (Oldmirror)

Fico soturno a olhar para o mar
e a pensar num rei a traduzir Shakespeare
numa varanda embriagada pelo azul.
Deixei de ter tempo para espiritualidades,
para o engodo das tremendas interrogações,
para a altivez das perguntas sem resposta.
Fiquei temporariamente domesticado
para uma outra escrita, por um discurso que não consente divagação ou fuga.
Normalizei-me, e contudo gosto de vera mão hesitante e trémula
à beira da consumação do poema
quando a maré assalta a muralha
e traz, misturados com a espuma,
os destroços das vidas que eu sonhei,
das vidas que, se calhar, eu já vivi.

- José Jorge Letria

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