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Era sempre com sabão. Há muitos anos que sabia que o seu sonho era visitar Paris. E navalha, fazia-a sempre com uma reluzente navalha. Queria ver a luz da Cidade Luz. Não conhecia mais ninguém que ainda o fizesse daquela maneira tão antiga e pouco prática. E Versalhes. Tinha ainda um pequeno recipiente cromado e uma cinta de couro para afiar a lâmina. Nunca tive tempo para o levar até lá, fui adiando, ele nunca o pedira. Lembro-me de o ver passar longos minutos a escanhoar a barba depois de ter suavizado a pele com uma toalha húmida e quente. Podia tê-lo feito, nas inúmeras visitas que fiz a Paris, podia ter tirado uns dias e levá-lo até lá. Não me recordo de o ver fazer sangue, tal era a paciência e a precisão. Quando secava a pele e depois de lhe espalhar "pedra", os olhos brilhavam de satisfação. Fiquei para sempre com esse peso em cima de mim. Era um homem bonito, corpulento, ficava-lhe perfeita a camisola interior de alças, num ar clássico, a preto e branco apenas possível num imaginário distante. Passou a última semana da sua vida numa cama, sem poder mais sonhar com Paris, gostava de o ter levado. Aprendi a fazer aquela espuma espessa. Nunca mais me falou nisso, nem em Versalhes, nem no Louvre. Ele estava magro e eu nunca tinha experimentado ter uma navalha na mão, mas fi-lo. Talvez o tivesse feito para lhe pedir desculpa. Apanhei-lhe o jeito, tornei-me eficiente e até em casa pratiquei em mim mesmo. Todos os dias, sentava-o na cama e repeti o ritual. Despediu-se sem ver a Luz. Despedi-me fazendo-lhe a barba, exactamente como sempre a fizera. E sem Paris, os olhos mantiveram o brilho até ao fim. (Oldmirror)
Doloroso isto... apesar de muito belo.
Kisss...
não gosto de despedidas. e destas muito menos. não digas adeus.
intenso e sofrido. como uma navalha.
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Belo de tão triste que é...
Tenho pra mim que levou a Luz de Paris nos olhos...
Um beijo