6/02/2010

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UM DUELO COM O SOLENE ACTO DE VIVER
"Somos conduzidos para um mundo de poesia impossível de descrever com palavras"


Morreu parte da pele que adoptei. Parte do coração que ainda bate. Hoje morri ainda mais. (Oldmirror)

Sempre que começo o Butoh, sinto uma hesitação, por não saber por onde começar. Mesmo quando pensamos sobre o que é "viver", vemos que normalmente o Butoh processa-se num inter-relacionamento de duas atitudes, aparentemente opostas, que coexistem: a humanista, baseada em amor profundo e altos ideais; a realista, fundamentada nos desejos e necessidades mais directas. Penso que o Butoh não teria existência própria, se o separássemos do acto de viver. Mas, por mais que se diga isso, não consigo deixar de hesitar todas as vezes que deparo com a questão: por onde começar? Começo sem sentir que essa hesitação significaria negar, sob um aspecto, o viver. Só posso concluir que é exactamente nesse processo denso da vida e nas situações de hesitação que está o real começar do Butoh. O Butoh começa nos movimentos quotidianos do corpo. Quando aparece alguém a querer fazer Butoh, digo sempre que isso levaria pelo menos cinco anos. Durante esse período, a aprendizagem realiza-se criando bases e não se sabe se na constante consciencialização da análise e síntese dos movimentos do próprio corpo ou se no aprofundamento do conhecimento sobre o processo de viver, se em nenhum dos dois ou em ambos.
A sabedoria de viver, o respeito à vida, tanto de si como a de outros, o reconhecimento da Natureza, são temas que vão surgindo no processo do aprendizagem. As dores de uma existência ou então os seus prazeres, os sofrimentos que marcam as nossas próprias vidas, as dádivas da Natureza e a sua destruição são para mim, fenómenos especialmente caros. Os ferimentos que recebemos nos nossos corpos cicatrizam e curam-se com o tempo. Os ferimentos que recebemos no nosso âmago, se aceites e contemporizados, farão nascer, ao longo dos anos e das experiências, alegrias ou tristeza que, um dia, nos conduzirão para um mundo de poesia, impossível de expressar por palavras, só por meio do nosso próprio corpo. Em matéria de se ensinar o Butoh, existem coisas que podem ser ensinadas e outras que não. Suponhamos que estivéssemos dando lições/aulas com o tema "Pai Nosso". Cada um de tentaria expressar, através do corpo, todos os movimentos que o tema lhes inspiraria. E eu compreenderia-os todos, por menores que fossem. Mas o problema começaria dali em diante.
Para mim, dançar com o único objetivo de fazer os outros entenderem as imagens que o tema evoca é apenas uma questão anterior ao Butoh; o problema encontra-se daí para frente. O importante é a postura diante da vida e dos sentimentos que decorrerem do processo vivencial, contidos nas verdades do "Pai Nosso". Além disso, a seriedade do viver e de como se vão confrontar com esse problema, constitui o aspecto mais importante. E sobre isso nada posso ensinar-lhes. É preciso que cada um faça uma reflexão. Na minha opinião, devem procurar no Butoh uma oportunidade para travar um duelo consciente com o solene acto de viver. Disse, antes, que levaria pelo menos cinco anos para aprender o Butoh. Nos simples movimentos que se ensinam nestes primeiros anos e também nos procedimentos do dia-a-dia já se incluem, com certeza, essas coisas que disse, que são impossíveis de se ensinar e de se descrever por palavras.
- Kazuo Ohno


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2 Comments:

Blogger olga said...

=((

6/04/2010 09:40:00 da manhã  
Blogger ivone said...

impossível de escrever em palavras passa_se ao sentido do gesto que o corpo exprime e a alma exige dançando_se a pele já que os poros assim o pedem para se fazer como que rodopiando num movimento por vezes obscuro assim morrendo_se um dia de cada vez mais e mais e mais de mansinho devagar bem devagar porque o tempo esse ñ conta já para quase nada a não ser para o ouvido apurado ás notas que se soltam

6/09/2010 10:20:00 da tarde  

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