2/06/2006

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Há quanto tempo não te vês completo? Por quanto tempo juraste permanecer quieto? Que feridas cravadas no rosto te impedem que lhe toques sem que as lágrimas escorram para lavar as impressões digitais ali deixadas? O corpo estremece pelo frio deixado pela nudez indefesa que impede movimentos mais bruscos. Ali estás, sem saber o que fazer com as mãos, olhando para o chão, à mercê de um qualquer movimento. Tremes. Já não te lembras como era. Procuras no pensamento a distração oferecida pelos movimentos do ar quente que te sai da boca. Está frio. Estás quente. Suplicas aos braços e às mãos que se agigantem e te cubram o corpo. O minuto parece-te longo, o mais longo dos minutos. Sentes a pele arrepiada. Sentes que todo o mundo escolheu o mesmo momento para te olhar. Olhas o céu. Sentes o calor do chão de madeira, o único calor. E pensas: quando me abraçará? (Oldmirror)

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

- Sophia de Mello Breyner

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