10/27/2009

353


Leitor: Há um certo tipo de atracção que sinto por ti e ao mesmo tempo não sei quem és, e dou por mim até a pensar se serás homem ou mulher. (by mail)

Eu: Queres saber quem sou, portanto, para saberes se deves ou não continuar a ter esse certo tipo de atracção por mim.
Sabes, poderia esquivar-me ao que me perguntas, procurando no labirinto das palavras, como agora o faço, uma qualquer forma de deixar tudo em aberto, mas mas hoje, não farei o que fiz há umas largas semanas atrás: deixar-te sem resposta. Vou atrasado mas cá está a tua resposta.
Não me tenho em boa conta. Não sou boa rês, mas não chego sequer a conseguir ser má rês. A única coisa verdadeiramente boa que fiz foi por acaso e é por acaso que continuo a caminhar em sua direcção até que um dia seja ela a dirigir-me a mim. O resto é sobrevivência e desorientação. Escrevo, escrevo muito, escrevo para viver e vivo para escrever, mas a primeira vez que o fiz a sério tive uma "branca" que dura há uns 12 anos. Nunca mais escrevi a sério, nunca mais escrevi o que precisava de escrever. Nunca pensei escrever um livro sequer, ou melhor, sempre pensei escrever livros, um para cada amigo, conhecido, desconhecido, exemplares únicos, uns atrás dos outros, sem cópias ou exemplares. Se um dia fosse escritor era esse tipo de escritor, o que escrevia romances e contos para oferecer aos amigos, um por amigo, conhecido, desconhecido. Mas há a branca de 12 anos.
Acabarei como caso grave de esquizofrenia, dou-o quase como certo, tão certo como cada letra que obssessivamente desatei a escrever para ti que já sem sequer sonhavas com a resposta. Acabarei como qualquer um de nós, mediano, com toda a obra por acabar. Costumo dizer que gostaria de morrer ao fim da tarde, sentado numa cadeira ao pôr-do-sol no Douro, sempre esse Douro que reflete nas suas margens a mesma rudeza tranquila e angustiada com que sigo caminhando sem sequer ter encontrado a minha estrada, embora me vá conseguindo orientar no afluente que um dia será rio e me transformará em foz.
Se tivesses tido a audácia de me perguntar se sou feliz - demonstra que és inteligente, ao não tê-lo feito - dir-te-ia que os momentos vividos em plena felicidade rapiamente me transformam na mais profunda infelicidade. Não gastarei muito do teu tempo a explica-lo.
Sou uma boa pessoa com uma imperdoável queda para o abismo e que um dia chegou mesmo a descer até ele pensando que ali seria o meu lugar; talvez ali estivesse a chave da minha porta, aquela por onde deveria entrar e finalmente parar com a incansável busca pelo "não sei bem quê".
Estou a ir ao fundo quando se calhar apenas querias saber-me na superfície. Prefiro o tinto do Douro ao alentejano, gosto de arroz de feijão com pataniscas, prefiro JS Bach a Mozart e dança a teatro. Solto lágrimas com Caravaggio e não com Miró, sigo os Tintoretto e não os Chagall. Sou velho e por isso deixei de encontrar tantos prodígios musicais como outrora, não vislumbro um novo Miles Davis com tanta facilidade, mas há pequenos milagres e deles faço bandas sonoras. Leio Pavese e Jorge Luís Borges, mas deixei-me de Saramago e Pessoa. Sou consumista, gasto muito e gasto-me a mim e entrego-me até à exaustão mas, sou velho, fico depressa exausto.
Também sou um cobarde e um preguiçoso. Queixo-me e pouco mais, porque a branca de 12 anos tornou-se no habitual cliente que de manhã se enconsta ao balcão do café e pede uma bica. Agora vejo TV, enterro-me no sofá e dispenso eventos. Agora olho o cinema anglo-saxónico porque perdi as formas para continuar a a amar o asiático. Como mal, hoje jantei pipocas e coca-cola. Dou a camisola e porque sou fraco não a peço de volta.
Estou proibido de amar...muito. Proibi-me a mim mesmo porque para amar é preciso encontrar a estrada e eu apenas me vou conseguindo orientar no afluente que um dia será rio e me transformará em foz.
E assim morrerei e viverei mediano, como quase todos que na roda de amigos confessam que um dia sonharam ser, fazer ou ter. Sou pessoa fácil mas não facilito. E acuso John Donne de ser o maior mentiroso do século XVII porque "a man could be an island". São demasiadas as vezes que necessito de mar à minha volta para acredite no que ele diz e talvez não dissesse que ainda por aqui andasse, talvez a substituísse por "the world is made by millions of islands".
Não esperavas a minha biografia, pois não?
Mais há mais que devias saber para que repenses esse certo tipo de atracção.
Sabias, por exemplo, que sou um péssimo amante, mas que sou um excelente potencial amante? Fazias ideia que falavas com quem não sabe falar. Sim falar, não conversar, com o Luís do bar. Não sei falar do que realmente importa, nunca falo do que verdadeiramente faz falta que falemos. Já percebi. Instalou-se agora a dúvida: o que estará então ele agora a fazer? Simples, a exercitar esta obssessividade que mantenho: escrever. Porque o resto, há a branca. Sou uma pessoa de brancas que, por isso, sente-se confortável no escuro.
Neste momento, ou já me deixaste de ler - "não era nada disso que eu queria saber, não era nada disso que eu estava à espera" - ou, pelo contrário, chegaste à parte em que queres ver até onde vai o meu dislate. Não irá muito mais longe. Embora pudesse ir até às inexplicáveis nostalgias de movimentos ou de épocas onde não estive mas foi como se estivesse.
E agora é preciso acabar o que comecei, ou será preferível dizer, o que começaste?
Não chegará um "cordialmente", muito menos "até um dia". Talvez o indicado fosse o que dizia, nas despedidas um famoso locutor de rádio americano: "adeus e boa sorte, talvez a gente se veja por aí". Mas gostaria de ir mais longe, gostaria - e nesta altura recordo-me que não posso desfazer o sentido estético deste lugar e preciso de palavras dos outros e de uma imagem que me acompanhem no ponto final, e não surgem ideias - de te confessar o quão longe me levaste, mas não o farei. Provavelmente, ajudaste a esvaziar um pouco mais a minha caixa do mail pois, a partir de agora poderei remeter imensas das perguntas para o post #353.
Não faço a mínima ideia se terá ficado tudo esclarecido mas provavelmente faltar-te-á a coragem de enviar um minúsculo ponto de interrogação que seja. Da minha parte, fica a sensação de que acabei procurando no labirinto das palavras uma qualquer forma de deixar tudo em aberto. (Oldmirror)

No man is an island
- John Donne

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2 Comments:

Blogger ivone said...

o voo 353 vazio? apenas o homem do leme. aquele que se dá a conhecer sem se conhecer e não se conhecendo continua a escrever porque é isso que ainda o mantêm vivo. respira cada letra. transpira cada palavra. as frases são sangue. corre_lhe na veia a necessidade da escrita porque disso está pendente a sua sobrevivência. voa planando as águas do douro. deixa_se levar na corrente fazendo dela o seu mar mais fundo onde se deixa afogar por opção. é um homem sem norte desnorteando_se às primeiras horas da madrugada quando a cafeína lhe enche os pulmões de ar.

soltas lágrimas com caravaggio e não com miró. segue os tintorettos e não o chagall. pois então deixa a tua tinta cravar_se em telas supostamente invisíveis porque essas homem ninguém tas pode tirar.

11/10/2009 07:46:00 da tarde  
Blogger [ t ] said...

http://www.youtube.com/watch?v=QJw2HsNR8kE&feature=PlayList&p=6EF52E16AFC8878E&playnext=1&playnext_from=PL&index=29

11/12/2009 09:38:00 da manhã  

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