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PARTE I
Um dia disse-lhe:
- Vou embora por uns tempos e quando voltar decidirei se irás morrer.
Desde esse dia nunca mais viveu. Passou os dias à espera que voltasse para saber se morreria ou não. Todos os dias, sentava-se à soleira da porta à espera de ver o vulto que significaria o veredicto final. Poucas vezes se lembrava do resto, poucas vezes entrava em casa para comer, beber ou simplesmente descansar o corpo. Os seus dias eram passados naquela soleira, à espera. Desde que ouvira aquela sentença a sua cabeça não mais pensou noutra coisa que não fosse... a chegada. Os mais diferentes cenários eram o passatempo: virá hoje? virá um dia? morrerei? viverei?
Foram anos e anos passados na soleira e o vulto nunca surgira ao fundo da estrada. Foram anos e anos até se convencer que, se calhar, o veredicto nunca chegaria e que por isso, viveria. Mas enquanto esperou, os anos passaram e pouco lhe restava para viver.
E no momento da morte o último pensamento foi para o vulto. Talvez naquela frase e na falta de resposta estivesse a própria sentença: morrerás da tortura de não saberes se morres ou vives. Dificilmente se lembraria de uma morte tão dolorosa.
- Oldmirror
Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.
O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.
Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.
Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?
Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.
Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?
Quantos Césares fui!
Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
- Álvaro de Campos
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ah, este Campos...
:)...
sou quem falhei ser...uauuuu!!!!
Bjs!