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[Narciso. Caravaggio]
Porque não consigo viver de elogios rasgados à minha genialidade nem convivo com o comum admirável gesto de escrever com o coração escondo-me na frieza dos sentimentos abandonados pelos que insistem em ser felizes. Aproprio-me do lixo sentimental e escolho viver com os defeitos colados por baixo do tampo da mesa onde apoiam os cotovelos aqueles para quem as atenções se viram como holofotes que iluminam que já escolheu o brilho da vida. Sou um afortunado, porque são mais os restos e os defeitos abandonados que meticulosamente recolho e me alimentam do que os elogios e as virtudes que são disputados pelas brilhantes e reluzentes personalidades que com prazer deixo passarem por cima de mim cortado a meta em primeiro e recolhendo uma vez mais os aplausos viciantes. Vive-se bem cá em baixo. (Oldmirror)
Estava aqui sentado e sabes o que cogitava para comigo? Se não tiver fé na vida, se perder a confiança na minha mulher amada, se perder a fé na ordem das coisas e se, pelo contrário, me convencer de que tudo é um caos desordenado, maldito e, talvez, diabólico, se me atingirem todos os horrores da desilusão humana, desejarei na mesma viver, e já que levei à boca esta taça, não a largarei até que beba a última gota! Aliás, aos trinta anos sou capaz de largar a taça, mesmo que não a tenha bebido até ao fim, e de me afastar... não sei para onde. Mas, até aos trinta, sei muito bem que a minha juventude vencera tudo, vencera qualquer desilusão, qualquer repugnância pela vida. Tenho perguntado a mim mesmo muitas vezes: haverá no mundo um desespero que possa vencer em mim esta sede de vida, frenética e, talvez, indecente? Cheguei à conclusão de que, pelos vistos, não existe, pelo menos ate aos tais trinta anos; e, ao chegar lá, repito, talvez já não anseie por nada, assim me parece.
- Fiodor Dostoievski
Cara, perfeito! Legal d+! valewz!