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Acordara em sobressalto. Tinha a certeza que não era a maçã que sabia, tinha a certeza que o cheiro não era adocicado, tinha a certeza que não era sequer quente mas confortável. As dúvidas aumentavam de dia para dia e combate-las a cada minuto provocavam-lhe insónias insuportáveis. Havia linhas e gestos claros, nítidos, mas o fumo ou o nevoeiro começavam a impedir que os sentidos se mantivessem apurados. Os truques que a mente lhe pregava aumentavam consideravelmente e isso provocava-lhe inquietação, tristeza e até desilusão. Sabia que encaixavam perfeitamente, mas faltava o sabor, o cheiro, aquela sensação de arrepio que recordava provocar-lhe um estado enebriante semelhante ao que experimentava sempre que exagerava no champanhe ao som de Coltrane e a olhar para os arranha-céus feitos de letras inventadas pela desistente Sarah Kane. Assim era impossível voltar a adormecer um dia. Não enquanto o sabor, o cheiro e o toque não voltassem a passear-se pelo seu imaginário, substituindo a realidade perdida. Talvez fosse a ameixa, talvez fosse ao vapor do chá verde que escapa do bule sem pedir autorização, talvez fosse a mesma sensação que as duas mãos que agarram na chávena de chocolate quente enquanto os pés percorrem o gelado passeio de Portobello. O que restará ainda agora que até isto se esfuma? O que restará quando os sentidos de um corpo, de dois corpos, deixam de temperar a memória? (Oldmirror)
Se eu te mostrar a minha luz interior podes abdicar de ser apenas uma fantasia e existir tangente ao meu corpo, pergunto.
- Valter Hugo Mãe
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hmmmmm.....
....
O que restará...reticências pingadas de orvalho de sangue ao desvirginar da memória
Um beijo