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Chegara ao fundo da rua como se tivesse chegado ao fim do Mundo. Chegara num passo lento e pesaroso, como se o fim da rua fosse o fim da vida, o beco sem saída onde apenas regressar para trás lhe parecia o mais provável. Parou. Olhou demoradamente o parede fria e indiferente. Sentou-se. Demorou uma nova vida sem desviar o olhar. Pela cabeça tudo lhe passou. Pela cabeça a insistente ideia de que aquela caminhada pela rua inclinada de onde sabia não haver saída antes mesmo do primeiro passo fora algo que decidira fazer numa desesperada tentativa de mudar o curso daqueles molhados e escorregadios paralelos. Sentia frio. Mas olhava a parede. Sentia que estava na hora de voltar as costas e caminhar de volta. Ao mesmo tempo sentia que poderia ali ficar para sempre, até que a parede passasse a ser apenas mais uma peça quase verdadeira de um dos seus sonhos que há muito começaram a ganhar vida própria a arriscarem a fuga para a realidade. Ouvia o tempo a esgotar-se, no entanto, não conseguia mover um músculo. Recordava o jogo que o arruinara, apostando sempre no vermelho enquanto só o preto surgia. Apostara tudo no vermelho com medo que se apostasse no preto a carta que mostraria o rosto fosse a anterior. Saiu derrotado. Agora frente à parede tinha decidido não sair da mesma forma, e assim não moveria um músculo. Deitou-se e de relance reparou no buraco de esgoto por onde corria a água que antes lhe precorrera o corpo. (Oldmirror)
Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?
Eis a grande raiva!
Misturam-na com as rosas
e chamam-lhe vida.
- José Gomes Ferreira
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E quando a água que nos percorre o corpo já não tem rosas misturadas?