6/12/2008

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Reunira pacientemente todas as armas que o deixariam dominado. Munira-se do melhor de Jarrett, Ros e Rachmaninov. Comprara a obra completa de Nabokov, de Kane, de Ferreira. Pendurara reproduções fiáveis de Caravaggio nas paredes brancas. Pintara a cama de lençóis de algodão preto. Na tela rodavam incessantemente os filmes de Kar-wai. Iria beber-se o melhor dos tintos dourienses e comer-se os melhores queijos, o melhor peixe. Havia morangos. Havia cigarros. Havia um corpo para oferecer. "Ficas?", perguntou-lhe. "Em que gaveta guardas a solidão?", respondeu-lhe, enquanto lhe afastava com o dedo uma madeixa de cabelo longo, negro e ondulado, que se escapara para o rosto derrotado, antes de voltar a descer as escadas, deixando-a aninhada em si própria ouvindo-lhe os passos lentos na calçada vazia ecoando dentro de si com a cadência do seu coração que, como o andar dele, iam deixando de se ouvir até que parariam ao dobrar a esquina. A gaveta onde guardava a solidão estava agora aberta, ela pairava pela casa como nunca. "Se ao menos ele tivesse chegado agora", pensou. (Oldmirror)


O corpo tem abóbadas onde soam os
sentidos, se tocados de leve, ecoando longamente
como memórias de outra vida
em frios desertos ou praias de lama.
O passado não está ainda preparado para nós,
para não falar do futuro; é certo que
temos um corpo, mas é um corpo inerte,
feito mais de coisas como esperança e desejo
do que de carne, sangue, cabelo,
e desabitado de línguas e de astros
e de noites escuras, e nenhuma beleza o tortura
mas a morte, a dor e a certeza de que
não está aqui nem tem para onde ir.
Lemos de mais e escrevemos de mais,
e afastámo-nos de mais – pois o preço era
muito alto para o que podíamos pagar –
da alegria das línguas. Ficaram estreitas
passagens entre frio e calor
e entre certo e errado
por onde entramos como num quarto de pensão
com um nome suposto; e quanto a
tragédia, e mesmo quanto a drama moral,
foi o melhor que conseguimos.
A beleza do corpo amado é
(agora sabemo-lo) lixo orgânico.
O mármore que pudemos foi o das casas de banho
e o dos balcões dos bancos,
e grandes gestos nem nos romances,
quanto mais nos versos! E do amor
melhor é nem falar porque as línguas
tornaram-se objecto de estudo médico
e nenhuma palavra é já suficientemente secreta.
Corpo, corpo, porque me abandonaste?
“Tomai, comei”, pois sim, mas quando
a química não chega para adormecermos,
a que divindades havemos de nos acolher
senão àquelas últimas do passado soterradas
sob tanta chuva ácida e tanta investigação histórica,
tanta psicologia e tanta antropologia?
A memória, sem o corpo, não é ascensão nem recomeço,
e, sem ela, o corpo é incapaz de nudez
e de amor. Agora podemos calar-nos
sem temer o silêncio nem a culpa
porque já não há tais palavras.
- Manuel António Pina

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2 Comments:

Blogger nilesong said...

estivessem as paredes vazias, desnudas, desoladamente brancas... estivesse a casa oca, esvaziada, despojada...
estivesse ela, apenas ela, sem artificios, sem acessorios e dissesse: isto é tudo o que tenho para dar.
talves assim ele ficasse...

6/14/2008 04:55:00 da tarde  
Blogger ivone said...

espectacular!

texto e imagem únicos

6/18/2008 07:45:00 da tarde  

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