8/16/2006

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Nunca chegara a compreender o enigma. Ele nunca tinha dormido naquela cama, nunca sequer tinha estado ali em casa. Sempre achara que eram um só, sempre tivera a certeza que aquele era o destino de ambos, mas nunca lhe dissera, nunca achara necessário explicar-lhe porque o amava assim tanto. É verdade que por diversas vezes sonhara com ele, chegou mesmo a sentir-lhe os dedos percorreram as suas costas e o calor da sua respiração na nuca poucos minutos antes de acordar, quando o frio da manhã mais se fazia sentir. No entanto, ele nunca dormira ali, nunca sequer tinha estado ali em casa. As únicas vezes que falara com ele tinham sido enquanto cozinhava ou quando saía do chuveiro e lhe perguntava se a achava bonita, mas sempre foram conversas com o espelho ou com a faca que a ajudava a cortar os legumes, ele nunca estivera na cozinha ou na banheira. Ele existia, mas nunca estivera naquela cama, nunca sequer tinha estado ali em casa. Ela amava-o e sabia que eram um só e que aquele era o destino de ambos, mas nunca chegara a compreender porque é que todas as manhãs aqueles lençóis onde ele nunca dormira amanheciam com as formas do seu corpo bem vincadas mesmo ao seu lado. (Oldmirror)

A ligação entre ambos era palpável. Imaginava-a como um fio fino e invisível de um tecido brilhante e viscoso, semelhante ao muco da aranha, ou como um rasto lustroso deixado por um caracol ao passar de uma folha para outra, mas também podia ser duro como aço e tenso como a corda de uma harpa ou de um garrote. Estavam ligados um ao outro, ligados e presos. Sentiam coisas em comum: dores, emoções, medos. Partilhavam pensamentos. Acordavam de noite e ficavam a escutar a respiração do outro, conscientes de que tinham sonhado o mesmo sonho. Não contavam um ao outro o que tinham sonhado. Não precisavam. Porque sabiam.

- John Banville

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2 Comments:

Blogger [ t ] said...

Podia deixar de voltar todas as noites, porque na razão deixou de dizer o seu nome. Escreveu-o um dia mesmo com um sorriso que o deixaria pousar por uma última noite nos lençóis desconhecidos por um suspiro gravado entre vazios e pequenas marcas.

Um dia também eu deixarei de aqui vir, sorrindo e sabendo que aqui nunca estive.

8/22/2006 05:35:00 da tarde  
Blogger Dark-me said...

A alma vai mto longe...
Bjo

8/25/2006 10:00:00 da manhã  

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