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Instala-se a dúvida no leitor. Tapar os olhos com as mãos é a mais forte possibilidade uma vez que por entre os dedos há sempre um olhar discreto e pouco comprometedor. A fuga sem regresso é uma solução colocada de imediato, no entanto, ficará a dúvida sobre as palavras, ficará a memória presa na imagem, insistirá a curiosidade para que voltemos ao lugar escuro e fumarento tentando descobrir a banda sonora de tamanho arrojo, de inesperado atrevimento. Procuramos, sem êxito, direccionar a atenção para o texto. Procuramos nas entrelinhas a chave que abrirá a gaveta das respostas. Uma gota de suor vai escorrendo pela testa misturando-se com uma gota de desejo que percorre o sentido contrário. Não vemos nada, não descobrimos nada. Recuperamos o olhar na imagem e nas palavras. Aumentam as suspeitas: loucura, perversidade. Lemos de novo. Olhamos de novo. Desistimos por hoje sem saber se voltaremos. Estamos deitados, a insónia apodera-se do corpo e a mente regressa ao quebra-cabeças. Olhamos para o lado. Outro corpo dorme. Admiramo-lo sem barulhos. Talvez a resposta esteja ali. Fazendo-o, não lendo-o, não vendo-o. (Oldmirror)
...Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma.
...Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstracto do corpo fazendo maelstrons na alma...
...Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!
Não quero fechos nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doida de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,
Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!
Não quero intervalos no mundo!
- Álvaro de Campos
Etiquetas: Álvaro de Campos
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Não precisam haver intervalos no mundo....Não há porquê para isso.
Beijos
Sabes Ana, eu até gostava que o Mundo fizesse um pequeno intervalo para respirar, para respirarmos.
Obrigado por continuares com paciência para levar com este fumo todo
[...]
que nao haja, entao, intervalos no mundo. que nao haja tempos ausentes, espaços em branco. que nao haja interrupções no ser, no coração, na alma...