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É demasiado diferente o tempo que sentimos e o tempo que o relógio que seguramos no pulso direito nos mostra. É demasiado diferente o mundo que vamos conservando com a perícia de um antiquário e aquele que nos entra pelos pulmões sempre que abrimos a janela das traseiras, a única que nos liga umbilicalmente ao mundo fora das quatro paredes onde encerramos esta feroz guerra de mundos que travamos sabe-se lá porquê. Sabemos exactamente o que querem dizer aqueles que desabafam: "não sou deste mundo", "já não é do meu tempo". Sabemos que talvez não hesitassemos se um dia pudéssemos regressar aquele futuro que ficou perdido nos corredores dos mundos e dos tempos, sem que fossemos capazes de o resgatar. Talvez um dia, consigamos a coragem de acordar com o despertador do tempo sentido e nos possamos esquecer do tempo frio que trazemos agarrado ao corpo. Talvez um dia consigamos que os mundos que pisamos sejam os mundos que quisermos. (Oldmirror)
Jantáramos os dois pela primeira vez:
amizade ou amor, pouco interessava
desde que ali estivesses. O meu mundo
ia mudando à medida do teu,
a cada gesto vão da vã conversa
antes que fôssemos p'lo Bairro Alto
e enfim o Lumiar, a tua casa.
Eu podia contar uma história, dizer
como aquele rosto atravessava o meu -
mas não,
«nada de narrativas, nunca mais».
Apenas a certeza de estar morto
há tanto tempo, que já não me lembro
de cor nenhuma dos teus olhos. Não,
já não existe o dia nem a noite
e este silêncio deve ser talvez
a única resposta. É bem melhor
ficar à espera de que não regresses.
- Fernando Pinto do Amaral
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