2/28/2007

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Porque a vontade de me fixar no mais simples ganha força.
Porque o interesse pelos pormenores é maior.
Porque sempre que os vejo fazem-me sorrir.
Porque sempre que foco mais longe, quero desfocar o que vejo.
Porque sempre preferia a cor ao preto e branco, porque não há apenas o preto e o branco.
Porque se fixar o perto e ele for para longe sempre deixará algo preso em mim.
(Oldmirror. Out.04)
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Para onde irão depois as coisas que aprendi?
Por exemplo: aquele cálculo de pi.
Que será feito daqueles restos de saudade,
destes medos antigos sempre novos?
Em que voltas desaparecerão os sonhos
que enfeitaram de flores o quintal antigo?
Por que caminhos irão andar aqueles ágeis pés?
Sobretudo, como se esvaziará de som a velha voz
e onde afundará o último verde daquela flama esguia?
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- Abgar Renault

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2/26/2007

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[Todd Stoddart.06 perfumed by Jasmin]
Resignamo-nos ao incontornável e acabamos felizes. Somos bafejados por momentâneos períodos de lucidez e depressa regressamos à vertigem de uma vivência afastada da normalidade por uma opção feita há demasiado tempo para que as suas motivações sejam ainda recordadas. Fomos ficando, pronto. (Oldmirror)
Fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
- José Luís Peixoto

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2/23/2007

188


[Tom Stoddart.06 perfumed by Jasmim]

Passaram a ser higiénicos mas nunca deixaram que regressar à lama nem que fosse por uns momentos. Não descobriram em qual dos lados eram mais felizes. Sabiam no entanto que o que os deixava satisfeitos era poderem lavar-se para depois se sujarem, muito mais do que sujarem-se para depois se lavarem. Afinal tinham mudado bem menos do que poderiam imaginar. (Oldmirror)

O que é a loucura?
É a base de todas as paisagens.
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- Mário Cesariny

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2/22/2007

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[Tom Stoddart.06 completlly perfumed with Jasmin]

Até onde nos leva a carne? Inevitavelmente lutamos contra a estrada que termina no afecto. Cerramos os dentes, fechamos os olhos que não queremos cruzados, tornamo-nos físicos. Terminamos, viramos costas, forçamos o esquecimento mas queremos mais. Repetimos, ficamos exaustos, assumimos o desgaste, lutamos com o corpo e com o sentimento e aos poucos a carne deixa de ser carne e a batalha desigual está perdida. Não terminamos, evitamos voltar costas e sonhamos, desejamos cruzar o olhar. O que resta da carne? Pode restar o abraço, pode restar a carne sem feridas e cicatrizes, pode sobrar a carne sem sangue, sem o sangue que fizemos. Até onde nos leva a nossa carne? Chocamos na parede, fazemos sangue e feridas, fazemos amor, cruzamos olhares, cruzamos futuros e direcções. Não vivemos sem lutar, sem descansar, sem o preto, o muito preto, e o cobertor que nos liga. Somos os melhores animais do mundo, merecemo-nos. (Oldmirror)

É só a saudade a bater-nos à porta
e a mim importa-me que estejas ao meu lado
enquanto o medo vai dançando à nossa volta
É só uma imagem que sonhámos, doce imagem
nada que um dia após o outro reproduza
mas meu amor estaremos sempre de passagem
Esquece o que eles dizem sobre um grande amor
quem podia mais querer-te como eu
nada que acredite conseguir mostrar pois é algo teu.

- Pluto

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2/20/2007

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[Tom Stoddart.06 - perfumed by Jasmin]
É preciso ter lá estado, ter lá ido e ter voltado. É preciso ter sentido, ter escolhido o que havia sobrado, o que quase sempre foi rejeitado. É preciso ter tocado, sofrido, tentado, vivido e sobrevivido. É preciso ter conseguido fazê-lo, entrado e saído e respirado e transpirado e amado e odiado. É preciso tê-lo conhecido e depois de ter regressado sentir ainda na pele, no estômago, no corpo o lume brando que sabe um dia voltará a queimar sempre que o desejo o imponha, sempre que o sangue correr mais forte nas veias, sempre que os olhos cruzarem os olhos. (Oldmirror)
Need to contaminate to alleviate this loneliness...
- Nine Inch Nails

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2/16/2007

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[found on aitb's place]

2/14/2007

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Tíqui. Líqui. Bíbi. Síqui. Wíqui. Fífi...(Oldmirror)
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Respiro o teu corpo
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
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- Eugénio de Andrade

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2/09/2007

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Não lhe saberei explicar porque desapareceram os bons dias e os sorrisos retribuídos. Não serei convincente quando lhe tentar dizer que é impressão dela, que ainda há quem caminhe sem correr, ainda há quem olhe as nuvens e não o chão, ainda há quem dê a mão e não a porta...fechada. Disfarçarei sempre que me perguntar porque é que os abraços que tenta dar provocam a todos uma estranha sensação de desconforto e desconfiança. Não terei coragem de lhe dizer que tem razão quando diz que ouve mais a palavra 'eu' do que a palavra 'nós'. Será com lágrimas que ouvirei o dia em que me dirá que já percebe o Mundo e gosta pouco dele. Pedir-lhe-ei desculpa por não ter poderes mágicos para lhe oferecer um pouco mais de "cor-de-rosa" e ter deixado que a tela fosse pintada com tanto negro. (Oldmirror)
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é um dia claro é um mundo escuro
entre a verde erva a carne é vermelha
homens deixam-se vergar por um naco de pão
é um dia escuro é um mundo claro
riem os homens e tudo é possível
percorri o caminho para colher uma maçã
mas no caminho havia uma cobra
a vida é boa mas a vida podia ser melhor
todas essas guerras entre tréguas eternas
todo esse morrer para viver ainda mais
a vida é boa mas a vida podia ser melhor
a carne é dura de roer mas mais tenra que os ossos
percorri o caminho para escapar à morte
mas no caminho havia um homem de ferro
enquanto a boca mastiga o ar rarefaz-se
enquanto o pão se digere a mão invalida-se
enquanto falamos na casa ela incendeia-se algures
é um dia escuro é um mundo escuro
os jornais noticiam como aconteceu e como não acontecerá
percorri o caminho para construir uma cidade
mas projectei torres em subterrâneos
no quadro o mestre-escola escrevia futuro amor e deus
salve a nossa pátria, e eu todo lábios e olhos
imitava-o na lousa
mas lá fora dançava a rapariga tangível
flutuando como se não houvesse leis da gravidade
percorri o caminho para encontrar o caminho
mas atrás do pudim havia um prato vazio
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- Gerrit Kouwenaar

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2/03/2007

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A água estava demasiado fria, mas isso pouco importaria, também a sua vida fora passada com o gelo entranhado até aos ossos e aquela banheira era agora a derradeira estrada para que o que restava da sua existência conhecesse por uns segundos o significado da palavra morna. Não conseguia escolher se o faria com água tépida ou simplesmente deixaria que ambas as torneiras se tornassem ajudantes do percurso que em breve faria. Sem entender bem porquê a sua memória entretia-se com os pormenores da cerimónia muito mais do que com a decisão que tomara naquele dia em que pela enésima vez ficara a velar as velas ardendo na mesa onde apenas um prato fora utilizado apesar de outro ter sido colocado. Naquele dia onde Parker tocou até à exaustão no concerto que deveria ter sido o mais pequeno do mundo quando fora contratado para o mais intimista do mundo. Naquele dia em que apesar de tudo já sabia que seria o nada que restaria preenchendo tudo. A água corria sem hesitações, decidida, tão decidia quanto ela na procura do derradeiro calor que a deixaria por fim com a desconhecida sensação de aconchego. Ela entrou na banheira. Primeiro os pés, depois as pernas, o tronco. Reclinou-se e sentiu de novo o frio na nuca. A água estava demasiado fria. A luz já não era das velas que arderam vezes naquele local sempre que decidira esperar ao som dos ncturnos de Chopin pela chegada de quem nunca chegava. A água já transbordava e tornava o chão da casa de banho numa extensão do caminho que decidira precorrer. Tinha pensado entrar nua, da mesma forma com que se deitara nos lençóis de linho preto que cobriam a cama onde demasiadas vezes do lado esquerdo sem que o direito tivesse sido preenchido por quem não sujara o prato nem fizera a água transbordar da banheira, apagando as velas e acompanhado Chopin. Mas acabou por entrar vestida de vermelho, a cor do pecado que gostaria de ter cometido. A água estava demasiado fria. Os ossos pareciam ceder como ela cedera quando aceitara a proposta de partilhar uma vida com quem acabou por nunca reclamar por inteiro o quinhão que lhe estava reservado. Ali estava, olhando o tecto, olhando a ponta dos dedos dos pés e a maquilhagem escura decorando-lhe, agora, o peito e a face. Olhou para a porta fechada, talvez fosse mais a força do hábito do que a esperança que ela se abrisse e que desta vez os braços a rodeassem e a levantassem. Mergulhou. Manteve os olhos abertos e não deixou de reparar que a falta de nitidez que agora sentia pouco era diferente daquela com que sempre olhara em seu redor quando a água não estava lá. A falta de nitidez que agora sentia pouco diferente era daquela que tantas vezes lhe surgia quando os seus olhos ficavam marejados de lágrimas todas elas com a mesma inicial. E mesmo nessa altura o caminho que começava a precorrer parecia-lhe menos importante do que saber se deveria abrir ou manter a boca fechada, se deveria abdicar do ar que guardara ou se o libertaria para escolher o seu destino. Faltava um segundo apenas, gastou-o com a última coisa que lhe viria à memória: a água estava gelada e nem agora conseguira sentir o calor que procurara. (Oldmirror)
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A estrela choveu rosa no coração da tua escuta,
o infinito rolou alvo no teu corpo, da nuca aos rins,
o mar orvalhou ruivo os teus seios de rubro cobre
e o homem sangrou negro no teu flanco sem fim.
- Arthur Rimbaud

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