9/29/2006

140



Os braços alongam-se ao som de Stravinsky. Os dedos mexem-se independentes de tudo. O ondular do tronco suado e sedento pela cadência de fogo acompanha o pássaro que passou a habitar nele. Os olhos, ora fechados, ora abertos, pouco mais vêem que contornos. As pernas aceitam o convite da batuta e desdobram-se em combinações inventadas para quem caminha no céu. Por momentos, toda a nossa existência assenta nos pés doridos que suportam o prazer. Já não existo, apenas vôo, apenas sinto, apenas
danço. Voltam os sonhos, as memórias, a leveza dos momentos onde a vida pôde esperar e o relógio se regia pela respiração absurda dominada pela música. O pássaro poisa, o fogo extingue-se, Stravinsky descansa, o corpo encolhe-se, os olhos não abrem, mas as lágrimas caem. (Oldmirror)

A ferida fechou-se cansada. Restou o rochedo inexplicável.

- Franz Kafka

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9/28/2006

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E quando nada o fazia esperar, ela regressava. Voltava para lhe dizer que nada mudara, mesmo tendo mudado. Voltara para lhe dizer que não voltaria, que apenas tinha voltado para dizer que ainda vivia. E vivia uma nova vida, uma vida onde, de novo, ele não caberia. Naquela vida só caberia quem também tinha mudado. Com tantas mudanças, entrar naquela vida seria viver qualquer coisa nova e se era nova deixara de fazer sentido que aqueles que a viveram antes a voltassem a viver como se de uma coisa nova se tratasse. De novo o inatingível parecia estar de regresso. Então ali ficaram a trocar palavras sem que as palavras dissessem o que quer que fosse. Acabaram a falar por falar, sem que ela, recém-regressada e mudada tivesse mudado para algo mais arrojado. Na cabeça dele aquele que poderia parecer um regresso fugaz e inofensivo foi bem mais além. Na cabeça dele o regresso foi também uma visita a um passado onde tudo se mantinha intacto, exactamente como no dia em que a porta fechou e não se adivinhavam regressos, muito menos ao futuro. (Oldmirror)

Sabes o que acontece quando magoamos as pessoas? - disse Ammu. - Quando magoamos as pessoas, elas passam a gostar menos de nós. É isso que as palavras descuidadas fazem. Fazem as pessoas gostarem um pouco menos de nós.
Uma traça fria com tufos dorsais invulgarmente densos aterrou de leve no coração de Rahel. Deixando pele de galinha nos sítios onde as suas pernas geladas lhe tocaram. Seis pêlos arrepiados no coração descuidado de Rahel.
- Arundhati Roy

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9/26/2006

138



Falo para ti que inventaste uma nova vida sem que tivesses terminado a que levavas. Para ti que começas aquilo que nunca acabaste e que vais vivendo vida após vida sem que saibas o que é vivê-la até ao fim. Faltam-te as forças para colocares as últimas pedras, falta-te a coragem para pores uma pedra sobre o que fica. (Oldmirror)

O que te marca
não foi gravado a ferro em brasa
nem à faca
O que te marca
é o sonho que não ousaste,
é o medo que não te larga
O que te marca
é o beijo que te falta.

- Ademir Antonio Bacca

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9/20/2006

137



Não queria voltar a escrever. Não queria que mais letras se fixassem aqui enquanto as lágrimas não secassem e me deixassem olhar para novas palavras que me atacam como punhais. Leio-te tão fundo, sinto-te tão fundo e, no entanto, nunca pude verdadeiramente mostrar-te como existo, quanto existo. Sim, sempre foi preciso coragem e nunca tive, não a necessária para que sempre que visito um espelho não me invadisse a sensação de que apenas uma pedra me ocupa o corpo, a mesma pedra que sabe amar sem saber como o fazer. Agora, em surdina, vou alimentando este lugar vazio, só preenchido com pedaços de ti que roubo em cada lugar por onde te encontro, por trás de cada olhar que consigo fixar nos raros momentos em que a ausência parece ter acabado. Por quanto tempo mais estarei preso nesta vontade de existirmos? Por quanto tempo serei empurrado por mim mesmo até ao que vou tendo de ti? Sufocante, desgastante, apaixonante esta irracionalidade de que é feita a nossa existência. Feita de silêncios, feita de fugas, feita de olhares disfarçados, feita de vontades reprimidas de gritar: "Vem!", feita do sofrimento de um sonho que nunca mais chega e que partiu porque o pouco que nos afastava pesou mais do que o muito que nos empurrava. (Oldmirror)

136



Não chega que o façamos. Não chega que o esqueçamos. Existirão sempre os caminhos traçados nos dias em que os cheiros e os toques se misturaram com palavras ditas de olhos fechados. E dos corpos restarão as cinzas e as mãos vazias para construir um futuro onde cada sorriso furtivo será apenas a extensão das raízes que deixamos para trás. Percorremos com sofreguidão as memórias do que fomos e depressa reparamos que apenas as tivémos, nunca as vivemos. Talvez porque na sede de nos vermos em chamas tenhamos esquecido que não bastam corpos quentes, é preciso abrir os olhos para os corações começarem a bater. (Oldmirror)

A noite chega
e depois da noite, a escuridão
e depois da escuridão
olhos
mãos
e respiração e mais respiração
e o som da água
que da torneira
goteja goteja goteja.
Em seguida dois pontos vermelhos
de dois cigarros acesos
o tique-taque do relógio
e duas cabeças
e duas solidões.

- Forugh Farrokhzad

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9/19/2006

135



Estou de partida. Na verdade nunca aqui pertenci, nunca fiz destas paredes a minha casa, nunca fiz desta cidade a tela onde pinto a minha vida. Decido rumar a norte para terminar a viagem. Por lá ficarei tentando acabar encostado à vinha que não quebra. Por lá marcarei os pontos finais do texto que sempre estará inacabado. Sem paredes, nem cidade, deixarei que as rugas da cepa mais velha invadam a minha pele e me prendam à terra. Para trás deixo um nada de tantas coisas. (Oldmirror)

Os meses e os dias são viajantes da eternidade. Assim como o ano que passa e o ano que vem. Para aqueles que se deixam flutuar a bordo dos barcos ou envelhecem conduzindo cavalos, todos os dias são viagens e a sua casa é o espaço sem fim. Dos homens do passado, muitos morreram em plena rota. A mim mesmo, desde há anos, me perseguem pensamentos de vagabundo mal vejo uma nuvem arrastada pelo vento.

- Matsuo Bashô

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9/18/2006

134



Porque deixei de querer olhar as nuvens ou escutar o que o mar tem para me dizer. Abandonei o prazer de caminhar descalços na relva fresca de um Verão que já terminou. Troquei o gosto de um cigarro ou do silêncio da noite longa. Quero-me agora aqui. Será aqui que me sentirei em casa. Será aqui que viverei sem precisar de fugir ou procurar refúgio. Ficarei vazio para me voltar a encher deste pedaço de vida onde passei a existir, onde passei a morar, porque nunca morei, apenas habitei. Recusarei o sobressalto de ser feliz ou a felicidade que toquei levemente em cada folha que reli. Ficarei, existirei. Saberei apenas que existe o lugar onde estou, o lugar onde me deixo ficar; sentindo os dedos que me afagam, o conforto de um colo, o calor da pele macia e o cheiro que nada me cobra. (Oldmirror)

Os teus olhos
exigindo
ser bebidos
Os teus ombros
reclamando
nenhum manto
Os teus seios
pressupondo
tantos pomos
O teu ventre
recolhendo
o relâmpago.

- David Mourão-Ferreira

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9/14/2006

133



Desculpa-me mas hoje não consigo, estou cansado. Seria impossivel oferecer-te as palavras que descansam em mim mas que se recusam a abandonar-me. Há dias destes, há dias em que apenas um fechar de olhos me pode devolver o sabor de cada letra, de cada memória guardada à espera do momento para sair do casulo, ganhar asas e dirigir-se aqui, a este pequeno canto onde descanso. Hoje não, hoje não posso. É que a loucura também tem limites, o sonho também precisa de ser alimentado, não só chorado. Fico por aqui. (Oldmirror)

Haverá pouca coisa a esquecer:
o voo dos corvos,
uma rua molhada,
o modo do vento soprar,
o nascer da lua, o pôr-do-sol,
três palavras que o mundo sabe,
pouca coisa a esquecer.
Será bem fácil de esquecer.
A chuva pintana argila rasa
e lava lábios,
olhos e cérebro.
A chuva pinga na argila rasa.
A chuva mansa lavará tudo:
o voo dos corvos,
o modo do vento soprar,
o nascer da lua, o pôr-do-sol,
lavará tudo, até chegar
aos duros ossos desnudados
e os ossos, os ossos esquecem.

- Archibald Macleish

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9/12/2006

132



- Nunca escreves textos alegres.
- Não?
- Não me digas que não reparas.
- Reparo, mas não concordo.
- Não?
- Não. Há quem chore de alegria.
(Oldmirror)

É claro que a vida é boa
E a alegria,
a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

- Vinicius de Moraes

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9/11/2006

131



Não consigo. Não páro de olhar. Ontem esqueci-me de comer. Hoje esqueci-me de dormir. Sinto o cansaço tomar conta de mim, mas aquilo impede-me de me render. Ainda há luz. estava Apagada e já se acendeu. O carro já saiu mas já voltou. Não encontro as peças do meio. Tenho tentado, mas as cortinas não deixam que complete o cenário. Vejo sombras. Temo que seja do estado débil em que me deixei cair. Fumo demais. Bebo demais. Sonho demais. E tento, tento sempre encontrar as peças que faltam. O que há para além das sombras. Que vida se vive fora daqui. É longe. O barulho não chega até mim. Qual será o perfume. Que música se ouvirá. A felicidade morará ali? É que há muito que saiu deste quarto. Sempre soube que descera as escadas e atravessara rua. Não, o amor também saiu. Fê-lo da pior forma, atirou-se da janela. Volto a espreitar. Volto a beber. Não quero comer. Olho. Ainda há luz, ali. A que restava aqui mudou-se. Mas eu sei que é ali. Do outro lado da rua. Eu sei. É ali que tudo acontece, porque aqui nada há para acontecer. (Oldmirror)

Procura a maravilha.
Onde um beijo sabe a barcos e bruma.
No brilho redondo e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.

- Eugénio de Andrade

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9/08/2006

130



Demasiados minutos sem respirar mais do que o ar daquele quarto onde todos os cheiros se misturavam com o cansaço e a vontade de esquecer o mundo reduzido ao tamanho de uma janela pouco interessante. Os despojos de vida acumulavam-se a cada instante, ao mesmo ritmo com que os cigarros iam sendo consumidos, ao mesmo ritmo com que os sorrisos se confundiam com os gemidos e o ponteiro do relógio largado num canto deixava de de marcar o tempo para assinalar o balanço dos corpos. Ali o tempo de uma eternidade foi esgotado, dividido, utilizado até à exaustão. Demasiados minutos entre quatro paredes, não foram suficientes para que tudo fosse dito; não houve tempo. (Oldmirror)

Linho dos ombros
ao tacto
já tecido
Túnica branda
cingida sobre as
espáduas
Os rins despidos
no fato já subido:
as tuas mãos abrindo a madrugada
Linho dos seios
na roca dos sentidos
a seda lenta sedenta na garganta
a lã da boca
cardada
no gemido
e nos joelhos a sede
que os abranda
Linho das ancas
bordado
de torpor
a boca espessa
o fuso da garganta.

- Maria Tereza Horta

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9/05/2006

129



Ligado. Nas frases escolhidas arrancadas do íntimo para desenharem uma tímida foto, no espreitar viciante de uma vida que segue ora longe, ora perto, num ar semelhante que me sinto respirar, num laço que continua a esticar em vez de se cortar. Engulo a poção exagerada do esquecimento que se revela ineficaz, amordaço a memória e continuo a limpeza da pele mas, impotente, continuo ali, nos mesmos locais, nos mesmos sentidos, como se o chá bebido tivesse como efeito uma qualquer eternidade. (Oldmirror)

Ter o que foi, em mim, e ter esquecido.

- Pedro Tamen

Porque onde termina o corpo deve começar outra coisa outro corpo.

- Al Berto

O tempo não tinha dimensão, ou se a tinha não a tem agora...

- Pedro Tamen

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