1/25/2008

230


Há quanto tempo não olhas as estrelas e pedes o desejo que te anda atravessado na garganta e te impede de levantares a cabeça? Há quanto tempo não decides de uma vez por todas que o farás, mesmo que isso te leve directamente a uma viagem sem fim no buraco negro de onde um dia conseguiste escapar por um triz? Há quanto tempo não deixas para amanhã o que podes fazer hoje e fazes hoje o que há muito deixaste na gaveta dos 'para sempre'? Há quanto tempo não segues estrela do Norte por saberes que é ao Norte que ela te levará? Há quanto tempo decidiste que morreste? Há quanto tempo deixaste de andar de combóio e de fotografar ao minuto a paisagem que em contagem decrescente te fazia aproximar da última paragem? (Oldmirror)

Nas horas mortas da noite
Os que há muito estão mortos olham para
Os novos mortos
Que avançam até eles
Há um leve bater do coração
Quando os mortos abraçam
Os que há muito estão mortos
E os que entre os novos mortos
Para eles avançam
Choram e beijam-se
Quando voltam a encontrar-se
Pela primeira e última vez
- Harold Pinter

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1/18/2008

229



Só no teu corpo caberia a história da minha vida. Só na delicadeza da tua pele a caneta rude feita para palavras difíceis conseguiria contar aquilo que sou. Só em ti seria possível traduzir o que nem eu mesmo sei de mim. Só o teu respirar deixaria que a escrita fosse marcada pelo ritmo do bater do meu coração. Apenas sobre ti saberia o que confessar, o que dizer, o que lamentar, o que festejar. Só apoiando o punho no teu corpo seria possível deixar contado cada segundo de uma existência que sempre foi resumida num longo ponto final. Em ti seria capaz de escrever. Em ti seria capaz de morrer, escrevendo. (Oldmirror)
Naquele dia
Vestira o meu corpo
Sem a alma,
Vestira o meu corpo
Sem a alegria,
Lavei os dentes
E esqueci-me do sorriso no lavatório,
Lavei as mãos
E deixei o tacto na toalha;
Nesse dia
Após o trabalho fui dormir,
Deitei o corpo
E reencontrei a alma.
No dia seguinte
Vesti a alma
E deixei metade do corpo esquecido
E a memória no secador de cabelo...
E algo inesquecível de que não me lembro aconteceu:
Porque hoje tenho a alma mutilada
E nem o corpo tenho.
- Charles Bukowski

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1/17/2008

228



Tempo.
.
Parece que existe no cérebro uma zona perfeitamente específica que poderia chamar-se memória poética e que regista aquilo que nos comoveu, aquilo que dá à nossa vida a sua beleza própria. Desde que Tomas conhecera Tereza, nenhuma mulher tinha o direito de deixar qualquer marca, por mais efémera que fosse, nessa zona do seu cérebro.
- Milan Kundera

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1/15/2008

227



- Então, recebeste muitas mensagens?
-Algumas.
- Interessantes?
-Todas iguais, não as leio todas.
- Mas qual gostaste mais?
-Não sei.
-Vá lá, qual foi a melhor?
- Foram duas.
- Duas? Quais? De quem?
- A da 'Galp', a dar-me os parabéns e a oferecer-me 100 pontos no cartão e a da 'Wesley' a dar-me os parabéns e a oferecer-me 30% de desconto nas compras que hoje fizer lá. (Oldmirror)
.
Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
E rasa xícara de chá.
- Adélia Prado

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1/08/2008

226

Acordara em sobressalto. Tinha a certeza que não era a maçã que sabia, tinha a certeza que o cheiro não era adocicado, tinha a certeza que não era sequer quente mas confortável. As dúvidas aumentavam de dia para dia e combate-las a cada minuto provocavam-lhe insónias insuportáveis. Havia linhas e gestos claros, nítidos, mas o fumo ou o nevoeiro começavam a impedir que os sentidos se mantivessem apurados. Os truques que a mente lhe pregava aumentavam consideravelmente e isso provocava-lhe inquietação, tristeza e até desilusão. Sabia que encaixavam perfeitamente, mas faltava o sabor, o cheiro, aquela sensação de arrepio que recordava provocar-lhe um estado enebriante semelhante ao que experimentava sempre que exagerava no champanhe ao som de Coltrane e a olhar para os arranha-céus feitos de letras inventadas pela desistente Sarah Kane. Assim era impossível voltar a adormecer um dia. Não enquanto o sabor, o cheiro e o toque não voltassem a passear-se pelo seu imaginário, substituindo a realidade perdida. Talvez fosse a ameixa, talvez fosse ao vapor do chá verde que escapa do bule sem pedir autorização, talvez fosse a mesma sensação que as duas mãos que agarram na chávena de chocolate quente enquanto os pés percorrem o gelado passeio de Portobello. O que restará ainda agora que até isto se esfuma? O que restará quando os sentidos de um corpo, de dois corpos, deixam de temperar a memória? (Oldmirror)
Se eu te mostrar a minha luz interior podes abdicar de ser apenas uma fantasia e existir tangente ao meu corpo, pergunto.
- Valter Hugo Mãe

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1/07/2008

225



Somos pequenos, Pacheco. (Oldmirror)

O que é bom para mim são umas garotas, que vêm cá de manhã
para me fazerem a higiéne. Não é mau.
- Luiz Pacheco

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224


As tentativas de juntar palavras tornara-se um sofrimento. As vezes que ligara e desligara o ecrã foram demasiadas, sem que entendesse porque é que o tema lhe criava um bloqueio assustador. Começou as preencher o vazio com lamentos desesperados com a esperança de que estes formassem o urgente texto. Com o correr do cursor acabou descobrindo que a dificuldade não estava na escrita, nem mesmo na compreensão que tinha sobre ela; a dificuldade estava em si mesmo, na dificuldade que sempre encontrara em explicar-se, em compreender-se e em passar ao ecrã os escassos resultados de uma significativa fatia da vida passada a procurar essas mesmas respostas. Sabia o que era, como era, o que queria, o que pensava, desejava, sonhava, temia, amava, odiava, escrevia, representava, dançava. Sabia quem era, mas nunca conseguira ordenar tudo isto numa espécie de manual do utilizador como sempre conseguira fazer sempre que olhava para o lado. (Oldmirror)
Sei muito bem o que estás a pensar: então agora já não basta ouvi-la, é preciso, ainda por cima, olhar para ela? (Pausa. Idem.) Eu compreendo-te. (Pausa. Idem.) Compreendo-te perfeitamente. (Pausa. Idem.) Uma pessoa parece não estar a pedir muito, há mesmo alturas em que seria quase impossível (Voz entrecortada.) pedir menos – a um semelhante – é o menos que se pode dizer – enquanto que na verdade quando se pensa bem – profundamente – afinal de contas o outro precisa tanto de paz – tanto que o deixem em paz – que foi talvez a lua todo este tempo – estivemos talvez a pedir a lua.
- Samuel Beckett

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