4/27/2007

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Não sei porque vieste acariciar a madeira, acariciar-me. Escusavas de o ter feito, pois nunca te acariciei mesmo tendo acariciado a madeira. Não sei porque derramas lágrimas na despedida se nunca fui capaz de as derramar nos reencontros. Não entendo que insistas na palavra saudade se a que tive foi puro egoismo. Não percebo que continues a sentir conforto quando descansas a tua mão nesta caixa de madeira, se sempre que a descansavas em mim era na pedra que o fazias. Sabes, não crescem raízes na rocha onde te plantaste, porque esperas agora que algo floresça? Não voltei em vida, não esperes que o faça agora que morri. Continuas desse lado? Porque o fazes? Porque insistes em voltar a explicar-me que é o amor que te faz permanecer? Nunca percebi quando o dizias em vida, porque o faria agora que o coração deixou de bater? (Oldmirror)
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No man is an island entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main.... Any man's death diminishes me because I am involved in mankind; and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.
- John Donne

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4/24/2007

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Seriam precisas demasiadas tempestades para que voltasse ao mar. Seriam precisas demasiadas marés para que deixasse que o vento afagasse de novo as velas que já recolhi. Já me esqueci do sabor do sal que me habitava o corpo. Já me esqueci da dança das ondas que embalavam o rumo que traçei. Já não oiço os pássaros que me acompanhavam à chegada. Não há faina nem passeio. Seriam precisos novos mapas para que o destino não fosse este porto onde o tempo tarda em chegar, onde o abrigo não parece existir, onde o fim não me deixa sonhar. (Oldmirror)
O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...
- Álvaro de Campos

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4/21/2007

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My Lovely Mirror


O que vais fazer para mudar isso? O que queres fazer para que o reflexo que sentes regresse ao espelho que um dia olhaste com prazer? Quanto tempo vais levar a reconhecer que é quando olhas e tocas este espelho que tudo parece fazer sentido? O que precisas mais de sentir para que chegues à conclusão que perdendo esta imagem perdes também muito do resto? Olha-o nos olhos, toma-o nos braços, apodera-te do corpo, recusa os prós e os contras e volta a olhar-te com aquele brilho que descobriste sempre que estavas em frente a ele. (Oldmirror)
Look at the mirror
It doesn't know you anymore
It doesn't talk anymore
It doesn't kiss you anymore
You don't know who you are
You just have
to know that mirror look
And all, everyone, everything, is too much
For you
And I try
I try
I really try
But everything is too much easy
And all those songs that beat me in my head
It was something like...
- The Gift

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4/19/2007

197


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Os lábios permanecem secos. Perderam o brilho deixado pela última gota de esperança e pelo reconfortante trago agridoce das noites perdidas em nome de uma vida que quis fosse usada segundo a segundo. As mãos deixaram de ser capazes de fazer a magia dos afectos com a destreza a que o coração sempre estivera habituado. E os gestos são agora mais longos, menos elegantes e determinados, como haviam sido sempre que de rumos se tratava. Revia agora a matéria dada, bem mais do que procurava novas lições que lhe pareciam chegar demasiado cedo já que as anteriores mereciam novas atenções. Passava a escolher o mais ao muito. Esquecera-se de como soava a própria voz; ouvia-a nítida e clara sem, no entanto, soltar qualquer vocábulo, interrogava-se como seria agora o seu som mas deixara de sentir vontade de tentar escuta-lo. Tudo em si girava dentro de si. Por dentro o tempo era real, enquanto por fora prevalecia o slow-motion. Achava desconfortante sempre que reparava que havia quem o venerasse mas aprendera que desde há muito que há mais venerados que venerandos e ele nunca uns ou outros, aliás ele nunca fora realmente nada. (Oldmirror)
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
- Sebastião Alba

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4/17/2007

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Aquele gosto que não me sai da boca e me tira a fome. Aquele cheiro que chegou foragido e agora é o meu. Aquele calor que me aqueceu e agora é o Verão. Aquele sorriso que era ansioso e agora é quadro. Aquele cansaço do tempo que não se perde e agora sobra. Aquelas paredes que protegiam transformadas em muros intransponíveis. Aquela espera que deixou de chegar. Aquele tempo que foi passando mas nunca passou. Aquele regresso que sempre se fez e teima em demorar. (Oldmirror)
Era assim:
queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?
quanto me queres?
quanto me desejas?
ah quanto te quero
quando te quero
quando me queres...
- Ana Hatherly

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4/16/2007

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Ainda não, António, ainda não é tempo de te olhar nos olhos, nem tempo de te conhecer. Esperarei um pouco mais, esperarei para sempre sem nunca chegar o momento. Temo conhecer-te, temo que a sensação de vertigem sentida nos farrapos que te roubei seja a vertigem que me leve à confirmação do desencanto pessoal. Terás que esperar António, provavelmente, terás apenas a espera pois sinto que se um dia for chegado o dia, será o último daqueles que até agora fui conhecendo. Por isso tenho medo, pavor de ser e não ser aquele que julgo ser sem ainda te ter olhado nos olhos. (Oldmirror)

Não acreditava que um dia destes chegasse. E agora, Março de 2007, veio com a brutalidade de uma explosão no peito. Não imaginava que fosse assim, tão doloroso e, ao mesmo tempo, tão pouco digno como a velhice e a decadência. Tão reles. O olhar de pena dos outros, palavras de esperança em que não têm fé...
- A. Lobo Antunes

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4/05/2007

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Bastaram alguns minutos cravados na memória para que o esquecimento nunca mais conseguisse aproximar-se. Em cada gesto ou rumo traçado, ouvia-lhe o sorriso, recordava-lhe o olhar, adivinhava as palavras desesperadamente acertadas. E cada gota de chuva, raio de sol ou brisa suave transformavam-se ao olha-las em pedaços de pele aquecidos por ténues toques, por escassos minutos. Uma vitória deixava de chegar inteira, era-me entregue em duas metades como se uma delas também lhe pertecesse. (Oldmirror)
Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço juramento:
Amo
firme,
fiel .
- Maiakóvski

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