4/28/2006

100


["Judith Beheading Holofernes".Caravaggio]

Das histórias que vos trago nunca revelo o fim. Nunca encontrei o fim que vos gostaria de revelar. Das histórias que vos ofereço nunca ficam completas. Nunca fui capaz de vos confessar o fim que as espera, o fim que me espera. Dou-vos tudo mas não me peçam o fim. E hesitem por diversas vezes antes do mo pedirem, porque o fim que vos posso oferecer poderá ser também o fim dessa ilusão com que alimentam a vontade de o procurar nas linhas que vou largando. E se um dia no fim da linha o fim seja eu mesmo, verão que a desilusão de o conhecerem vai muito além da mera ficção. (Oldmirror)

...bastava, por conseguinte, eliminar na humanidade a fé na imortalidade para desaparecer do seio dela nao só todo o amor, mas toda a força viva susceptível de continuar a vida no mundo....

- Fiodor Dostoievski

4/26/2006

99



Um dia sorrirei porque não morrerei e verei aquilo que sempre vi, aquilo que sempre reconheci e que por assim ser ali fiquei, aqui fiquei. Por assim ser deixei-me estar sem incomodar o que quer que fosse, recusando o risco de os tornar a todos naquilo que sou ou me tornar de novo que aquilo que sempre fui. (Oldmirror)

Ah! Ah! Ah! Dizem que fazia amor com qualquer um
E que se drogava
Ah! Ah! Ah! Dizem que foi apanhada a ver o mar

Com outra mulher
Hum! Hum! Hum! Dizem que foi encontrada morta

Os pulsos cortados ...

- Jorge Palma

4/24/2006

98


[The Calling of St. Matthew. Caravaggio]

Nunca pedi a liberdade a não ser para pedir a reclusão. Não a usarei em vão, nem mesmo lhe tocarei. Decidi acorrentar-me ao destino e não mais subir à tona. Ficarei mergulhado num mar de desistentes esquecendo-me do que significa lutar. Ficarei algemado a uma vida que por desnorte vendeu a alma ao desbarato e o coração aos pedaços. E do fundo do meu cárcere recitarei todos os pecados por cometer onde o maior seria amar-te ainda mais. (Oldmirror)

Passar-te estas palavras assentes
na promessa de nada comunicarem.
Aceitas tão pesado desafio? Voz
sem uma pessoa dentro: numa cidade
grande de tantas heranças, tão poucos
amigos, que mais havia a esperar?
Apenas a derradeira ousadia
do corpo, a pausa de pensar um outro
desejo. Não é preciso inventar
a distância, cada um para seu lado
a ir ter com as coisas que conhecemos
há tanto tempo. Dou contigo na única
atenção, ficaria aqui muitas horas
só a olhar a calma que pões em tudo.
E tudo foi breve, as semanas
já correm sobre o nosso esquecimento.
Dizer quem és vai ficar sempre
adiado, procuro o doído desejo
da repetição.

-Helder Moura Pereira

4/22/2006

97


["Morte da Virgem". Caravaggio]

Não seguir os conselhos. Recusar tudo que não seja o contrário. Desafiar as leis da gravidade e insistir em fazer o caminho inversos. Não ter conhecido profundamente o correcto. Ser do contra. Insistir em tocar as estrelas com a ponta dos pés e a terra com os dedos das mãos. Amar e procurar desesperadamente não o fazer. Dizer adeus quando se acabou de chegar e nunca chegar para nunca partir. (Oldmirror)

Se não podes fazer da vida o que tu queres,
tenta ao menos isto,
quanto puderes:
não a disperses em mundanas cortesias,
em vã conversa, fúteis correrias.
Não a tornes banal a força de exibida,
e de mostrada muito em toda a parte
e a muita gente,
no vácuo dia-a-dia que é o deles
- até que seja em ti uma visita incómoda.

- Constantino Cavafy

4/19/2006

96


["David" - Caravaggio]

Procurar-te-ei por todo o lado, até nas mais escuras luminosidades e recônditos pormenores. Admiro-te a expressão, fixo-me nos olhares desistentes e marginais que transformas em sagrados apelos interiores a um amor apenas vivido por quem cheirou a penumbra das noites e se aqueceu na mesma manta que o mendigo abandonou. Ensinaste-me a olhar a claridade através do tenebroso. Mostraste-me a vida com a morte, e viveste e morreste e eu não te perdi. Na tua fuga acabaste por me aprisionar. Na tua arte apunhalaste a minha. Da minha vida, longa, fizeste uma viela na tua, curta. E se um dia escrever o amor derei: o amor é isto. Pouco mais o poderá ser. Pouco melhor poderá ficar. E sempre que me sentar, a olha-las, as outras, continuarei sem verter uma lágrima porque um dia me sentei, a olha-las, as tuas. (Oldmirror)

4/18/2006

95



Mais do que vivendo, sobrevivendo, podemos escolher o silêncio, podemos preferir a morte, poderemos dar ouvidos a Pitágoras - "se o que fores dizer não for mais belo que o silêncio, então cala-te" - apenas porque não encontraremos muito mais a dizer que não o silêncio. Poderemos ser os últimos a pronunciar a palavra amor e mesmo assim sermos os primeiros a morrer por ela, os primeiros a conhecer-lhe o significado, o sofrimento, o conforto. Podemos ser os últimos a amar, podemos amar apenas no último minuto de vida e ainda assim amar imenso, mesmo assim podemos ser os únicos que alguma vez amaram verdadeiramente. Seremos enterrados, declarados mortos, impossíveis de regressar, loucos, mentirosos e mesmo desconhecedores do afecto; ainda assim talvez sejamos incontornáveis, ainda assim talvez sejamos uma questão de tempo, de todo o tempo do mundo. (Oldmirror)

Esteja a vontade,
trate-me só por eu
ou omita-me de todo.
Afinal ninguém sabe ao certo
onde começa o próximo.
Poderá dispersar-se,
mas permaneça deitado.
Feche os olho
se não ouça nada.
Quando nada sentir,
tem de sentir o que sente.
Ou será que também é daqueles
que sangram a cada tiro?
O meu conselho é gorduras vegetais
e inteligência animal.
No entanto, tudo com medida
e sempre de cabeça inclinada.
O resto é bastante simples.

-Hans-Ulrich Treichel

4/13/2006

94



Sempre foram precisas as histórias, sempre foi preferível a fantasia. Basta olhar para a janela para chegarmos a essa conclusão. No interior de um quarto, numa folha em branco, no horizonte de mar, na imensidão de uma árvore caduca, no cheiro húmido das paredes da igreja, sempre foi melhor viver para além do olhar pela janela ou do caminhar na realidade. "Não se sente feliz a passear num jardim neste dia de sol?", perguntar-lhe-iam. "Não iria tão longe", responderia Becket, com a segurança de quem escolheu não olhar a janela, antes esperar que viessem espreitar por ela. Se viver na fantasia, será fantasia a minha morte. (Oldmirror)

I believe him, I know it’s my only chance to – my only chance, I believe all I’m told, I’ve disbelieved only too much in my long life, now I swallow everything, greedily. What I need now is stories, it took me a long time to know that, and I’m not sure of it.

- Samuel Becket

4/11/2006

93



Recuso-me a adormecer sem ti. Não fecharei os olhos ao teu calor sentido nas minhas costas, nem ao afagar dos cabelos quando a manhã se anuncia, teimoso, por entre os espaços deixados livres pelos estores. Não descansarei a alma sem que a guardes enquanto os sonhos me tornam distraído. Não sonharei sem que antes possas molhar o meu peito com as lágrimas de mais um dia cravado na tua vida. (Oldmirror)

A noite chega
e depois da noite, a escuridão
e depois da escuridão
olhos
mãos
e respiração e mais respiração
e o som da água
que da torneira
goteja goteja goteja.
Em seguida dois pontos vermelhos
de dois cigarros acesoso tique-taque do relógio
e duas cabeças
e duas solidões.

- Forugh Farrokhzad

4/10/2006

92



Aprender a inocência quando julgamos nada mais ter a descobrir. Descer bem mais fundo quando pensavamos já lá ter estado e voltado para contar. Chorar bem mais forte quando as lágrimas que já vertemos nos pareceram um oceano. Sentir os arrepios mais frios quando a vida já nos tinha colocado um cobertor por cima. Voltar ao zero quando já estavamos bem perto do fim. Reformular o conceito de amor, quando a definição que tínhamos nos era perfeitamente suficiente. Sermos capazes de gritar depois de termos aprendido que a falar lá chegariamos. Pedirmos para recomeçar depois de envergonhadamente ficarmos a saber que nada fizemos. Lamentarmos que o centro do mundo tenha sido mal calculado. (Oldmirror)

Amo
– lançando-se contra moinhos de vento gritava Dom Quixote.
Amo
– envenenado de céus gritava Othello.
Amo
– recostado em Ossian soluçava Werther.
Amo
– tremendo nas carruagens de Jasvin repetia Vronski.
Amo
– separando-se de Grusenka sonhava Dimitri Karamazov.
Amo
– brandindo a espada recitava Cyrano.
Amo
– regressando do comício sussurrava Jacques Thibault.
Amo
– gritaria também o herói de um romance contemporâneo, mas o autor não lho permite.

Não está na moda.
O amor já não é contemporâneo.

- Izet Sarajlic

4/06/2006

91



Sempre preferi a fuga para a frente do que um passo para a frente e dois para trás. Nunca acreditei em novas vidas muito menos em vidas pintadas a cor depois de terem existido a preto. Não há redenções nem passados esquecidos. As cicatrizes não se curam embora se disfarçem e as rugas desaparecem mas permanecem. Sempre preferi a vida para a frente carregada de despojos acumulados ao longos dos anos. Nunca enviaria para reciclagem um único fotograma por mais riscado, escurecido ou estragado que estivesse; levo-os todos comigo, quero leva-los sempre. Os amores ficam amores, os ódios resistem como ódios, as lágrimas não secam sem que outras as substituam e os risos continuam a cravar-me no rosto profundas marcas. Não há novas vidas, há apenas a vida que orgulhosamente, mas desgraçadamente me faz repetir as palavras de Bill Hicks - "It's an insane world and I'm proud to be a part of it" - em cada olhar em volta, em cada parede onde nunca deixei de poisar a minha cabeça. (Oldmirror)

A meu favor
Tenho no verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio
Algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça
A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incêndio em nome de nós todos.

- Alexandre O'Neill

4/05/2006

90



Disfarçando a infelicidade com risos nervosos e humor mordaz, nunca reconheceu que foram eles os culpados do seu ódio. Tornara-se extrovertida para que a rejeição que também vivera se tornasse imperceptível. Mas para si jurara que nunca mais viveria por eles, não queria mais o amargo sabor das feridas que lhes foram depositadas no coração e no orgulho que aos poucos fora perdendo. Ria-se muito, mostrava toda a sua inteligência e dava tudo por uma massagem aos seu ego. Era admirada e isso tornava a sua infelicidade um pouco mais suportável. Mas o pior vinha ao cair da noite nos raros momentos em que ficava sozinha e por isso evitava-o. A solidão despia-a, quase tanto como o amor que tão mal a tratou e os amantes que tanto lhe disseram não. Ela, que não pode impedir que os sonhos a acompanhem no sono, continua a querer muito, por isso mesmo continua a lutar muito para que as noites sejam breves e que as insónias a invadam, porque de olhos abertos ele pode sempre ser o que quiser e não o que o coração manda. (Oldmirror)

Um incandescente pulmão
espera no Norte
pelo cigarro do Sol. O teu
rosto adormecido parece
uma mensagem. Mas quem
a envia? Muito caminhámos
lado a lado
no inclinado caminho dos anjos.
Por fim as pedras tornaram-se
em escuridão, mas o rosto
de um homem é mais claro que
o seu pensamento, o seu nome
mais profundo que a escuridão
dos sentimentos onde
está fechado. Agora
a noite noite é insensível ao dia
agora o teu sono é todo crepúsculo
que resta.

- Gösta Agren

4/04/2006

89



Ah, como seria mais fácil a vida de todos fossem como nós. Quanto tempo poupariamos a pensar naquilo que não conseguimos ser porque sempre o fomos de forma diferente. Se todos nos entendenssem não seriamos nós a pensar o quento estamos errados, não seriamos nós a buscar desesperadamente as almas gémeas que se escondem no cinzento fosco de um qualquer lugar onde apenas nos conseguimos respirar. Temos que nunca nos venham a dar razão, sei que morreremos sem que entendem que somos um pouco mais que eles e muito menos que os outros. Ainda bem que nos protegemos, ainda bem que nos reconhecemos. Basta um olhar, uma palavra. Sonho com o dia em que descobrirei uma ilha secreta onde apenas os nossos conheçam as coordenadas. Uma ilha onde não o céu que veremos e as estrelas que contaremos são exactamente aquelas que vemos e nunca aquelas que dizemos ver. Uma iha onde os fantasmas possam ser fantasmas sem que olhemos para o lado recusando a sua presença com medo que uma vez mais sejamos tomados como dementes. Uma ilha onde possamos ser loucos como somos e não loucos como acham que somos. Nunca te cansas? (Oldmirror)

As pessoas realmente frívolas são as que só amam uma vez na vida. O que elas chamam lealdade ou fidelidade, chamo eu letargia do hábito ou falta de imaginação. A fidelidade representa na vida emocional o mesmo que a coerência na vida do intelecto, apenas uma confissão de impotência. A fidelidade! Tenho de a analisar um destes dias. Está intimamente associada à paixão da propriedade. Há muitas coisas que atiraríamos fora se não receássemos que outros as apanhassem.

- Oscar Wilde

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