6/26/2008

270


O tempo que corra que para mim já pouco importa. A vida que se agite que já não me contagia. Prefiro ficar. Prefiro ver passar. Prefiro estar. Inventei um tempo meu para deixar de ser escravo do tempo dos outros. Olho-os sem interesse. Vejo-os, vejo-os apenas. Espero, pouco mais. (Oldmirror)

— a Morte de que eu falo —
não é a que segue logo a tua queda,
mas precede a tua aparição no fio.
Antes de subir é que morres.
O que dança já está morto
— decidido a todas as belezas, capaz de todas elas.
Quando apareces, vai uma palidez
— não, não estou a falar de medo mas do contrário,
de uma invencível audácia —
vai uma palidez cobrir-te de cima a baixo.
Apesar da pintura e das lantejoulas
serás pálido e de alma lívida.
E nessa altura
é que a tua precisão será perfeita.
Sem mais nada que te prenda ao chão,
podes dançar sem cair.
Mas trata de morrer antes de apareceres,
e seja um morto,
já,
a dançar no fio.
- Jean Genet

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6/25/2008

269




Do norte de África chega o vento quente. Chega um pedaço de Norte de uma bússola desconhecida. Do norte de África chega negro suficiente para a tinta que aqui solto. Chega a paisagem escondida por trás da duna formada por trás das palavras. Do norte de África chegam promessas deixadas a Rá para que Ísis chegue com o vento. Chega o que entretanto havia partido. (Oldmirror)

Virás
como um sopro, uma leve
palpitação da carne, um arrepio
na pele encrespadado desejo. Dirão
alguns que é primavera e o vento
arredonda a saia
das árvores. Eu digo
que é verão e foi
o amor que chegou.
- Albano Martins

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6/23/2008

268



A apologia do incorrecto. A teoria da provocação. A necessidade da transgressão. A ilimitação dos mandatos. A libertação dos olhares. A insatisfação com o igual. A instalação da dúvida. (Oldmirror)

Não há duas peles de igual textura; nunca é a mesma luz, a mesma temperatura, as mesmas sombras, nunca são os mesmos gestos; porque um amante, quando animado do verdadeiro amor, é capaz de vencer séculos e séculos de ciência amorosa. Quantas mudanças de tempo, quantas variações de maturidade e de inocência, de arte e de pervercidade...
- Anaïs Nin

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267


Não há pecados no prazer. Não há loucuras no amor. Não há limites no desejo. Não há sorte no achado. Não há regras entre paredes. Não há tempo para esbanjar. No imenso horizonte fixamo-nos no pormenor. Descemos. Vamos mais longe. Não há desilusão sem medo. Não há dança sem choro. Não há prisões sem desistências. Na longa linha recta traçamos-lhe curvas apertadas. Deslizamos. Vamos lentamente. (Oldmirror)

...Sabes que ainda mal olhei para ti?
Há ainda demasiada santidade presa a ti.
Não sei como te dizer o que sinto.
Vivo numa expectativa perpétua.
Tu vens e o tempo desliza num sonho.
É só quando te vais embora
que me apercebo completamente da tua presença.
E depois é demasiadamente tarde.
-Anaïs Nin

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6/18/2008

266



Poderá um corpo distante provocar tamanha tempestade? Qual será o poder da palavra oferecida no momento certo? Será a imaginação demasiado fértil ou será fértil o terreno que começamos a pisar? Quanto vale cada quilómetro em direcção contrária e qual será o tempo previsto para um primeiro olhar? Por entre malas feitas e desfeitas existe o tempo que se evita, existe o momento que se teme e se deseja, existe a esperança de ser, ou não ser, tanto assim, existe a certeza que poderá ser uma certeza. E se fosse desta? (Oldmirror)

As mãos redescobriram o silêncio.
Praticam essa arte muito antiga
de na imobilidade
tudo desejarem.
- Al Berto

A vida
tal como está
é muito estranha.
A vida está confusa.
E inquietante.
O que até é bom.
Reformulo: Nada tranquila...

Calendário:
Contra a água, dias de fogo.
Contra o fogo, dias de água.
- Octávio Paz

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6/12/2008

265




Reunira pacientemente todas as armas que o deixariam dominado. Munira-se do melhor de Jarrett, Ros e Rachmaninov. Comprara a obra completa de Nabokov, de Kane, de Ferreira. Pendurara reproduções fiáveis de Caravaggio nas paredes brancas. Pintara a cama de lençóis de algodão preto. Na tela rodavam incessantemente os filmes de Kar-wai. Iria beber-se o melhor dos tintos dourienses e comer-se os melhores queijos, o melhor peixe. Havia morangos. Havia cigarros. Havia um corpo para oferecer. "Ficas?", perguntou-lhe. "Em que gaveta guardas a solidão?", respondeu-lhe, enquanto lhe afastava com o dedo uma madeixa de cabelo longo, negro e ondulado, que se escapara para o rosto derrotado, antes de voltar a descer as escadas, deixando-a aninhada em si própria ouvindo-lhe os passos lentos na calçada vazia ecoando dentro de si com a cadência do seu coração que, como o andar dele, iam deixando de se ouvir até que parariam ao dobrar a esquina. A gaveta onde guardava a solidão estava agora aberta, ela pairava pela casa como nunca. "Se ao menos ele tivesse chegado agora", pensou. (Oldmirror)


O corpo tem abóbadas onde soam os
sentidos, se tocados de leve, ecoando longamente
como memórias de outra vida
em frios desertos ou praias de lama.
O passado não está ainda preparado para nós,
para não falar do futuro; é certo que
temos um corpo, mas é um corpo inerte,
feito mais de coisas como esperança e desejo
do que de carne, sangue, cabelo,
e desabitado de línguas e de astros
e de noites escuras, e nenhuma beleza o tortura
mas a morte, a dor e a certeza de que
não está aqui nem tem para onde ir.
Lemos de mais e escrevemos de mais,
e afastámo-nos de mais – pois o preço era
muito alto para o que podíamos pagar –
da alegria das línguas. Ficaram estreitas
passagens entre frio e calor
e entre certo e errado
por onde entramos como num quarto de pensão
com um nome suposto; e quanto a
tragédia, e mesmo quanto a drama moral,
foi o melhor que conseguimos.
A beleza do corpo amado é
(agora sabemo-lo) lixo orgânico.
O mármore que pudemos foi o das casas de banho
e o dos balcões dos bancos,
e grandes gestos nem nos romances,
quanto mais nos versos! E do amor
melhor é nem falar porque as línguas
tornaram-se objecto de estudo médico
e nenhuma palavra é já suficientemente secreta.
Corpo, corpo, porque me abandonaste?
“Tomai, comei”, pois sim, mas quando
a química não chega para adormecermos,
a que divindades havemos de nos acolher
senão àquelas últimas do passado soterradas
sob tanta chuva ácida e tanta investigação histórica,
tanta psicologia e tanta antropologia?
A memória, sem o corpo, não é ascensão nem recomeço,
e, sem ela, o corpo é incapaz de nudez
e de amor. Agora podemos calar-nos
sem temer o silêncio nem a culpa
porque já não há tais palavras.
- Manuel António Pina

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6/10/2008

264



Eu quero: Nunca quis muito.
Eu tenho: Dois braços...um corpo.
Eu acho: Que já acho em demasia.
Eu odeio: Não tanto quanto amo.
Eu sinto saudades: De as sentir.
Eu escuto: Muito e sempre.
Eu cheiro: O cheiro que me deixam colado à pele.
Eu imploro: Para que nunca me façam implorar.
Eu procuro: Chegar bem até ao fim.
Eu arrependo-me: De nunca me ter arrependido.
Eu amo: Sempre amei.
Eu sinto dor: Quando a dor é dos outros.
Eu sinto falta: Do toque.
Eu importo-me: Cada vez menos.
Eu sempre: Arrisquei.
Eu fico: Porque se não ficasse poderia não ser encontrado.
Eu acredito: Que deixar de acreditar faz sentido.
Eu danço: Sempre que a vejo dançar.
Eu canto: Letras imaginárias saídas das notas de Jarret.
Eu choro: Menos por mais e mais por menos.
Eu falho: Por norma.
Eu luto: Para erguer a bandeira branca e me render.
Eu escrevo: Mais do que mereço.
Eu ganho: Por acaso.
Eu perco: Por natureza.
Eu nunca: Soube bem escolher uma só estrada.
Eu confundo-me: Ao tentar saber para onde vou e nunca naquilo que sou.
Eu estou: Mais perto do fim.
Eu sou: A soma do que sobrou daquilo que não sou.
Eu fico feliz: Sempre que a felicidade deixa de ser essencial para me sentir feliz.
Eu tenho: Menos tempo mas todo o tempo.
Eu preciso: Sempre.
Eu deveria: Ser "melhor".
(Oldmirror)

De tanto se verem
Há palavras que vos poriam doentes
Palavras conhecidas mas muito perigosas de manejar
A não ser que sejam rodeadas de música
Também há quem meta açúcar nas amêndoas amargas
Palavras como areia, erva
Como sol, como deitados lado a lado
Como pele dourada, como cabelos louros
Como dentes brilhantes e lábios salgados
E depois outras palavras, ainda mais perigosas
«Ninguém à vista, podemos seguir»
E as mais perigosas de todas:
«É ainda melhor à quinta vez.»
Felizmente, que há carradas de aeronaves
A fabricarem fenomenologia a granel
E a meterem-vos bombas atómicas de atravesso pela goela...
Peço desculpa… o sopro da inspiração...
Não é todos os dias que a musa nos visita.
- Boris Vian

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6/09/2008

263



Há dias em que se conhecesse o teu perfume juraria que o tinha sentido ao acordar. Dias em que a cada esquina adivinharia que passaras por mim. Há momentos em que se conhecesse o teu perfume, juraria que era aquele mesmo que descansava na banca de fruta ao lado dos morangos, bem perto da amoras. Há dias em que quase senti na cara uma gota de chuva transformada numa gota do teu suor, libertado depois de uma noite que quase dei como real e não como adorno a um sono agitado. Há dias em que tenho a certeza que não precisarei nunca de te ver, de te sentir, de te cheirar, para te ter. Há dias em que o calor que se entranha na minha pele é igual ao que sei sentiria de o abraço se prolongasse por mais de um segundo. Há momentos em que por um momento foste demasiado real para seres irreal. Há palavras que fixo no desfolhar de livros fora de moda que são escritas com o contorno dos teus lábios que desenho com as letras d-e-s-e-j-o. (Oldmirror)

Se eu fosse um descascador de canela
deitar-me-ia na tua cama
e deixaria o pó amarelo da casca
na tua almofada.
Os teus seios e os teus ombros cheirariam a canela
nunca mais poderias passar no mercados

em a profissão dos meus dedos
flutuando por cima de ti. O cego tropeçaria
certo de quem se aproximava
mesmo que tomasses banho
na chuva das calhas, na monção.
Aqui no cimo da coxa
neste macio pasto
vizinho do teu cabelo
ou do sulco
que te divide as costas. Este tornozelo.
Serás conhecida entre os estranhos
como a mulher do descascador de canela.
Só a custo te podia ver
antes do casamento
nunca te toquei.

- a tua mãe nariguda, os teus irmãos tão brutos.
Enterrei as minhas mãos

em açafrão, disfarcei-as com
alcatrão de tabaco
ajudei os apicultores a colher o mel..
Uma vez que estávamos a nadar
toquei-te na água
e os nossos corpos permaneceram livres,
podias segurar-me e ser cega de cheiro

Saltaste a margem e disseste
isto é como tu tocas as outras mulheres
a mulher do cortador de relva, a filha do queimador de limão

E procuraste nas tuas mãos
o perfume desaparecido
e soubeste
como é bom
ser a filha do queimador de lima
deixada sem marca
como se lhe tivessem falado no acto do amor
como se ferida sem o prazer de uma cicatriz
Roçaste o teu ventre nas minhas mãos
no ar seco e disseste
sou a mulher do descascador de canela. Cheira-me.

- Michael Ondaatje

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