8/28/2006

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O pequeno rasgo na persiana vai deixando entrar a luz para dançar ao som do esguio fumo que me abandona desiludido por ter conhecido o que há bem lá no fundo do um corpo estendido, cansado, transpirado, esgotado depois de te ter procurado vezes sem conta. Depois de te ter conhecido bem lá no fundo do teu corpo estendido, desiludido, embrulhado na certeza de um silêncio que mais não diz que o fim. A luz e o fumo apaixonam-se indiferentes à falta de música que deixamos transparecer. A luz e o fumo entrelaçam-se, acariciam-se desafiando a vontade terrena que jaz aqui no chão onde dois corpos permanecem parados disfarçando a trevoada de sonhos que se vão agitando muito mais do que as ondas do mar também elas, como a luz e o fumo, enfeitiçadas pelas curvas da areia onde também os os corpos se chegaram a aconchegar. Respiro o ar que já não queres, guardando-o como se fosse esse o tesouro que descobriste para mim. Deixo-me estar, deixas-te estar. Em breve já não estaremos. (Oldmirror)

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos
E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

- David Mourão-Ferreira

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8/24/2006

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If we do meet again, why, we shall smille.
- Júlio César


As coisas que ficam por fazer ou a vontade de nada mais fazer. Era difícil saber o que pesaria mais. Tinha a certeza que já conhecera e procurara muito, que nunca iria encontrar tudo, de alguma forma, seria sempre uma busca incompleta de objecto desconhecido, de sentimentos misturados sem ordem aparente. Se escolhesse fazer o que falta, em breve mais desafios se lhe cruzariam, se decidisse nada mais fazer, ainda teria que descobrir a sensação vivida na pele de terminar a procura, definitivamente. No balanço que fizera, descobrira que vivera mais do que estaria à espera, no entanto, vivera bem menos do que sonharia quando começou a pensar no que poderia estar para vir. Vivera mais mas não vivera suficientemente bem para terminar tudo o que tinha começado, não por falta de tempo mas por manifesta falta de forças. Há muito que as forças tinham partido e as que ficaram serviam apenas para olhar para o mar, para acender o cigarro e para preencher mais umas folhas brancas com lentos pensamentos e processos de intensões. E agora estava ali, de novo a olhar o mar, lá em baixo, tentando decifrar se ele lhe dizia "vem", ou "adeus". Há muito que o vento e a chuva, as nuvens também, lhe tinham dito o que fazer, mas o mar, esse, continuava um enigma e sem o ouvir pouco mais poderia fazer. (Oldmirror)

It's the fog, it's starting to roll in, it should be dark very soon; wherever i go there he is, i want to forget him, but there is something unfinished somehow.

- Undercurrent

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8/16/2006

126



Nunca chegara a compreender o enigma. Ele nunca tinha dormido naquela cama, nunca sequer tinha estado ali em casa. Sempre achara que eram um só, sempre tivera a certeza que aquele era o destino de ambos, mas nunca lhe dissera, nunca achara necessário explicar-lhe porque o amava assim tanto. É verdade que por diversas vezes sonhara com ele, chegou mesmo a sentir-lhe os dedos percorreram as suas costas e o calor da sua respiração na nuca poucos minutos antes de acordar, quando o frio da manhã mais se fazia sentir. No entanto, ele nunca dormira ali, nunca sequer tinha estado ali em casa. As únicas vezes que falara com ele tinham sido enquanto cozinhava ou quando saía do chuveiro e lhe perguntava se a achava bonita, mas sempre foram conversas com o espelho ou com a faca que a ajudava a cortar os legumes, ele nunca estivera na cozinha ou na banheira. Ele existia, mas nunca estivera naquela cama, nunca sequer tinha estado ali em casa. Ela amava-o e sabia que eram um só e que aquele era o destino de ambos, mas nunca chegara a compreender porque é que todas as manhãs aqueles lençóis onde ele nunca dormira amanheciam com as formas do seu corpo bem vincadas mesmo ao seu lado. (Oldmirror)

A ligação entre ambos era palpável. Imaginava-a como um fio fino e invisível de um tecido brilhante e viscoso, semelhante ao muco da aranha, ou como um rasto lustroso deixado por um caracol ao passar de uma folha para outra, mas também podia ser duro como aço e tenso como a corda de uma harpa ou de um garrote. Estavam ligados um ao outro, ligados e presos. Sentiam coisas em comum: dores, emoções, medos. Partilhavam pensamentos. Acordavam de noite e ficavam a escutar a respiração do outro, conscientes de que tinham sonhado o mesmo sonho. Não contavam um ao outro o que tinham sonhado. Não precisavam. Porque sabiam.

- John Banville

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8/03/2006

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(o texto que faltava em baixo)

E a vida ia passando. As folhas do calendário que pendurara na parede eram cada vez menos. Tinha escolhido a vida possível, a vida que desejara acabou por não acontecer. Sabia que não tinha lutado tudo por ela, nunca fora de grandes lutas. Era de muitos ideais, de muitos sonhos e incontáveis desejos, mas nunca fora capaz de lutar tudo por qualquer das coisas. Em conversa fazia questão de levantar um pouco mais a voz sempre que falava dos minúsculos gestos de coragem que tivera durante uma vida que acabou por ser a possível, não a que desejara. Levantava a voz para lembrar que levara até ao fim aquilo que já tinha terminado, levantava a voz para dizer que agora era livre para começar uma nova vida, mesmo que as folhas do calendário que pendurara na parede continuasse a perder folhas indiferente ao desejo de uma nova vida. Baixa a voz quando tem que falar do amor pelo qual não lutou tudo, baixa a voz quando lhe perguntam se ama, ouve-se quase em surdina a sua explicação para a nova vida que tenta pintar de cor-de-rosa mas que umas nuvens inpedem que a cor se torne viva. Mas sorri, sorri quase sempre, mas levanta a voz para falar dos minusculos gestos de coragem que chegou um dia a ter e quando chega à noite diz-lhe sempre que gosta muito, mas quando tenta dizer "amo-te", a voz fica-lhe embargada pela memória de uma luta que nunca levou até ao fim.

- Oldmirror
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