7/28/2009

341



I. Por vezes, precisamos da explosão da cor para podermos regressar ao preto e branco. Precisamos de levar o contador a zeros para que consigamos enganar a longevidade. É preciso recomeçar, recomeçar todos os dias, balançar ao som do ponteiro mais irrequieto que trazemos no relógio. Por vezes, só terminando é possível iniciar, sair do ponto morto e arrancar em primeira.
.
II. Sentiu as costas húmidas, pequenos seres vivendo por baixo do seu corpo. Sentiu o sol queimar-lhe a pele. Ainda não saíra do estado que marca a fronteira entre o sono e o acordar. Habitualmente, era nesse momento que melhor sonhava. Seria aí que se encontrava? Passou em revista os últimos momentos antes do esquecimento, não se lembrava de muito mais para além dos lençóis pretos onde se enrroscara. De um pulo, sentou-se inspirando o ar do Mundo inteiro e abrindo os olhos de tal forma que cada pormenor num raio de quilómetros lhe ficaria gravado na memória. Adormecera na cama mas acabara de acordar num gigantesco relvado a céu aberto...muito aberto. Olhando em redor, procurava pontos de orientação que lhe explicassem o que acontecera entre a cama e a relva. Andou dias sem entender o que lhe acontecera, acabando por concluir que entre a cama de lençóis pretos e a relva verde e húmida, com formigas debaixo de si, haviam passado anos. Anos em que andara a dormir. (Oldmirror)


É preciso soltar o ritmo que me prende.
Esta amarra de ferro à palavra e ao som.
Emudecer, no espaço, o arco e a corrente
E ser nesta varanda um pouco só de cor.
Não saber se uma flor é mesmo uma criança.
Se um muro de jardim é proa de navio.
Se o monumento fala, se o monumento dança.
Se esta menina cega é uma estátua de frio.
Um pássaro que voa pode ser um perfume.
Uma vela no rio, um lenço no meu rosto.
Na tarde de Fevereiro estar um dia de Outubro.
Nos meus olhos de morta uma noite de Agosto.
É preciso soltar o ritmo das marés,
Das estações, do Amor, dos signos e das águas,
Os duendes das plantas, os génios dos rochedos
Nos cabelos do Vento, as tranças de arvoredos.
Desordenai-me, luz!
Que nada mais dependa
Das águas, das marés, dos signos e do Amor.
É preciso calar o arco e a corrente
E ser nesta varanda um pouco só de cor.
-Natércia Freire

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7/21/2009

340



Poderei ler as obras que decidi deixarem entrar em mim, as palavras que fazem com que o coração vá batendo, as letras com que aprendi a dizer o que raramente digo. Infelizmente, sei que nunca conhecerei a que sabem e quantas folhas terá a história da minha vida. (Oldmirror)

Se eu morrer queimem-me
juntamente com cada folha
de papel que escrevi!
Quando morrer
quero morrer inteiro!
- Assiram L.

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7/18/2009

339


Falemos então de quartos roubados à memória de quem lhes fechou a porta sentindo a asfixia de quatro paredes. Para quem quatro paredes nunca se transformariam num imenso horizonte. Falemos então de quartos que se transformam em mundos demasiado grandes para dois corpos que asfixiam se as peles não se sobrepõem, se o ar que respiram não nasce nos peitos colados, se cada palavra não é pontuada com um beijo demorado. Falemos então do Mundo lá fora, de repente, tornado minúsculo quando é visto de um quarto onde dois corpos vivem mais agitados que os corpos que se agitam perdidos por entre passeios e ruas. Falamos do quarto roubado à memória? Não. Vivamos nele.
- Oldmirror (“Falemos dele” – 28/09/07)

- O que é?
- Estou a pensar que ainda te amo.
- A sério? Apesar de?
- Apesar de.
- Philip Roth

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7/17/2009

338



O arrepio chega muito antes do toque, chega quase sempre com a voz, chega com os gestos que trocamos mesmo antes de sabermos que os fazemos. O prazer chega primeiro. Chega quando chegamos, quando olhamos, quando ficamos ali, parados, apenas. O nós nunca chegou, sempre existiu, e só a sua existência basta para que os estômago se contraia, para que os músculos se mostrem para que o arrepio e o prazer existam. Se morresse o toque, desaparecesse a voz, esquecessemos a carne, recusássemos a invasão mútua dos corpos; mesmo assim sentiríamos o arrepio, o prazer, a existência. Mas agora toco-te, falo-te e invado-te a carne; é tempo de o fazer.
- Oldmirror (“existimo-mos” – 27/09/07)
Sei que darei ao meu corpo os prazeres que ele me exigir. vou usá-lo, desgastá-lo até ao limite suportável, para que a morte nada encontre de mim quando vier.
- Al Berto

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7/16/2009

337



É também isso que me mantém preso a estes quartos que apenas vão mudando de número, mantendo os personagens, o desejo, a cumplicidade e a vontade de estarmos longe do mundo. É porque sem eles não ficaríamos completos, porque apenas eles suportariam ver-nos assim, despojados de tudo o que não seja nós mesmos. Reais, sem corantes nem conservantes. Só mesmo este mundo de números onde a matemática é feita a dois conseguiria somar emoções, multiplicar desejos, dividir cumplicidades e subtrair a culpa que acabamos por sentir sempre que a equação salta fora deste quarto quadriculado. É também isso que me mantém preso a ti, essa forma única de te tornares denominador comum de alguém como eu mergulhado em demasiadas variantes apenas coincidentes quando nos unimos aqui, fechados por parentesis rectos.
- Oldmirror (“matemática” – 22/09/07)
Imagem e espelho! Os seus olhos abraçaram a nobre silhueta adiante, na borda do mar azul, e, num arroubo de encantamento, teve a percepção de que este relance o compenetrava da própria essência do belo, da forma como pensamento divino, da perfeição única e pura que habita o espírito e ali erigia, para adoração, uma imagem, um símbolo claro e gracioso. Era esse o seu êxtase. E o artista no declínio da vida acolheu-o sem hesitar, avidamente mesmo. O seu espírito abriu-se como que em trabalho de parto, toda a sua formação e cultura efervesceram, sofreram mutação, a sua memória fez aflorar pensamentos primitivos, transmitidos como lendas à sua juventude e até então nunca avivados por chama própria. Não estava escrito que o sol diverte a nossa atenção das coisas do intelecto para as coisas dos sentidos? Segundo se dizia, ele atordoa e enfeitiça a razão e a memória, ao ponto de a alma, afundada em prazer, esquecer totalmente o seu estado real, ficando presa em êxtase ao mais belo dos objectos iluminados pelo Sol, e então é só com a ajuda de um corpo que ela encontra forças para se elevar a contemplações mais altas. Na verdade, Amor fazia o mesmo que os matemáticos, apresentando às crianças não dotadas imagens tangíveis das formas puras: assim o deus se comprazia em servir-se também, para nos tornar visível o espiritual, da forma e cor da juventude humana, que enfeitava com todo o esplendor da beleza, para instrumento da lembrança, fazendo-nos inflamar, ao vê-la, de dor e esperança...
- Thomas Mann

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7/12/2009

336


Guardo os últimos segundos para que possa esperar até que a chave volte a entrar naquela porta que desgraçadamente continua a ter dois sentidos. O mais ínfimo pormenor entra em mim da mesma forma com que entramos um no outro quando o tempo pouco nos dizia, quando o tempo repousava na mesma cama onde deixamos uma vez mais o confuso suor do estarmos inteiros sabendo que partiremos de novo em breve. Olho-te muito porque muito não chega para acalmar dois corpos que se cruzam numa vida interrompida. Evito-te os olhos. Mostram-me o que recuso ver, mostram-me o que recusas mostrar. Demoras os movimentos, prolongas o momento, esperas que o tempo sossegue e que todos os caminhos nos levem de volta aos lençóis onde acabámos de deixar que a vida avançasse um pouco mais. Vou engolindo em seco com a mesma frequência com que a ideia de fracasso me passa pela cabeça, com a mesma frequência com que me lembro e me esqueço que depois da porta voltar a abrir-se, abre-se com ela a dimensão de uma vida a cores que me encandeia e me faz procurar desesperadamente por um novo quarto onde, a preto e branco, te volte a olhar.
- Oldmirror (“evito-te os olhos” – 21/09/07)
Há vício no meu olhar fixo
basta lançar a linha e logo serena
em mim o desassossego
os olhos repousam no flutuador, mas é mais
que repousar, é como se finalmente
estivesse livre para não sair do sítio,
e assim o meu olhar fica inerte - não espero
que o peixe morda - fixo
o momento. Não preciso de nada não preciso
de olhar. Concentro-me nas rugas à superfície
não me esforço em penetrar até ao fundo.
Indiferente ao que possa aparecer, desaparecer
por cima ou por baixo de mim, indiferente
ao que foi e indiferente ao que está para vir.
As cores lisas a brilhar à tona da água
já são acontecimentos a mais
e vejam, eis o primeiro círculo
de algo que caiu na água ao longe.
Nada melhor do que não fazer nada,
do que não me mexer. Até um mínimo
erguer de olhos perturba irremediavelmente a ordem
e faz acontecer, faz acontecer.
- Judith Herzberg

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7/11/2009

335


Sei-me perdido como te sei perdida em mim. Sei que te perderás comigo assim que eu me perca. Virás comigo até às profundezas da minha tristeza para depois te perderes tentando trazer-me à tona. Sei que chorarás as mesmas lágrimas que chorarei, só que as que chorares serão verdadeiras. Juntos faremos juras futuras das quais apenas tu conseguirás cumprir. Juntos trocaremos afectos dos quais apenas tu terás direito. Já morri e com isso matei-te. Já cheguei e não quero ver-me partir, não quero ter que voltar, porque sei que se tiver que voltar a faze-lo não o farei e, uma vez mais, de nós restarás apenas tu aqui fechada à espera do sonho.
- Oldmirror (“vem comigo” – 16/09/07)
Estou deitado no sonho não
perturbes o caos que me constrói
Afasta a tua mãodas pálpebras molhadas
Debaixo delas passa
a água das imagens
- Gastão Cruz

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7/10/2009

334


Sei que me esperas, mas não sei porque espero. Os dias em que fazemos parentesis na vida deixam o sabor agridoce da chegada e da partida. Atraso-me. Fico parado sem escolher se o passo que darei me levará de novo a esse quarto ou a uma vida que abandono sempre que nele entro.
Não pára de ecoar em mim a frase do protagonista - “We are all empty houses, waiting for someone to open the lock and set us free...” - mas não consigo descobrir que fechadura espero ver aberta.
- Oldmirror (“the lock” – 15/09/07)
Não sei o que é um espírito. Ninguém
conhece a fundo a luz do seu abismo
enquanto o vento, à noite, vai abrindo
as infinitas portas de uma casa
vazia. A minha voz
procura responder a outra voz,
ao choro dos espectros que celebram
a sua missa negra, o seu eterno
sobressalto. Num ermo
da cidade magoada escuto ainda
o rumor de um oráculo,
a febre de um adeus que se prolonga
no estertor dos ponteiros de um relógio,
nesse ritmo feroz, na pulsação
do meu sangue exilado que recorda
um abrigo divino. pai nosso, que estás
entre o céu e a terra, conduz-me
ao precipício onde hibernou a alma
e ensina-me a romper a madrugada
como se a minha face fosseum estilhaço da tua
e nela derretessem, por milagre,
estas gotas de gelo ou de cristal
que não sabem ser lágrimas.
- Fernando Pinto do Amaral

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7/09/2009

333


É pior quando se quer e não quer. Somos levados numa espiral de euforias e desilusões, de esquecimentos e regressos à Terra sem que consigamos descansar. Envolvemo-nos, dormimos, acordamos, choramos. E sem parar a história repete-se, mas regressamos, voltamos para nos encerrarmos nestas paredes onde somos levados a sermos nós, onde sem saída mostramo-nos inteiros, frágeis. É pior quando se pode e não pode. Mergulhamos num oceano nadando contra a corrente e tentamos a direcção contrária até perdermos as forças e sermos levados pelas ondas até naquela praia onde apenas somos felizes se lá chegarmos indefesos, sem forças para resistir.
- Oldmirror (“querendo sem querer” – 14/09/07)
... Oh yes, getting
A man to love is easy, but living
Without him afterwards may have to be
Faced. A living without life when you move
Around,...
... with ears that hear only
His last voice calling out your name and your
Body which once under his touch had gleamed
Like burnished brass, now... destitute.
- Kamala Das

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7/08/2009

332


O abraço dos corpos ainda estranhos não chega. Estamos sós. Em volta as paredes que não aconchegam, os lençóis que não aquecem, as vozes não nos são familiares. A única saída é a descoberta, a procura nos corpos de recantos protectores, a busca desesperada de olhos que tranquilizem. Os avanços, os recuos, as perguntas que temos adiadas para depois. Sem fuga, sem rede, vamos construindo um mundo mais mundo que o mundo lá fora.
Os perfumes já não são estranhos, os sabores revelam-se viciantes, os olhares embaciados pela respiração ofegante já nos lembram um porto de abrigo. No entanto, as perguntas ainda não têm respostas, mas ficam adiadas para depois, talvez mais tarde já nem sejam precisas, talvez mais tarde já nem as queiramos ouvir.
- Oldmirror (“Pergunto-lhe depois” – 13/09/07)
O que é a magia, perguntasnuma casa às escuras.
O que é o nada, perguntas,saindo de casa.
E o que é um homem saindo do nada
e regressando sozinho a casa.
- Leopoldo María Panero

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7/07/2009

331



Sempre foi o mais difícil. Abrir a porta do quarto sem sabermos o que iremos encontrar, sem sabermos por quanto tempo iremos ficar, sem sabermos com quem poderemos contar.
Sempre foi o mais difícil sermos os primeiros a chegar. Olhamos o vazio e a dúvida toma conta de nós. Ficaremos sozinhos? Demorará a chegar? E se não chegar, valerá a pena ficar?
Chegamos, olhamos em volta para aquilo que já vimos algures. Sem memórias nossas. Sem nada. O único local onde nada somos nós a não ser nós mesmos.
O hotel...
- Oldmirror (“A chegada” – 12/09/2007)


podes colher de mim
tudo quanto precisares
alimento-me só de saudade
um corpo que deixou de tremer por mim
suar por mim
em todas as superfícies
a dor que causa é só comparável
ao prazer que foi quem de gerar
- Alberte Momán

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7/04/2009

330


Ele perguntava-se demasiadas vezes:
- Mas porque é que não deixo tudo para trás?
Havia sempre uma ou outra amarra que o mantinham no porto, sem conseguir solta-las e navegar para bem longe.
Um adiar, uma tarefa mais, um problema a resolver, uma dor que incomoda, uma responsabilidade assumida.
Ele perguntava-se demasiadas vezes:
- Alguma vez chegará o dia?
Havia sempre uma ou outra paixão que o faziam esquecer que era no porto que se mantinha, que ainda não sentira o ondular da maré, os ventos fortes que sulcam cada pedaço de pele exposta, que o sol que lhe queimava as esperanças não era o mesmo que, de amarras soltas, queimariam a vontade de regressar.
Ele perguntava-se demasiadas vezes:
- Como será respirar fundo?
(Oldmirror)

Contradigo-me?
Pois bem, então contradigo-me. Sou extenso, contenho multidões
- Walt Whitman

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