7/29/2011

counting-break

436



Preparou alguns post-it que ficaram colados no espelho da casa de banho. Eram muito poucos: cinco. Não precisaria de mais. Um com alguns contacto, outro com responsabilidades inadiáveis, o terceiro preenchido com a morada de casa e a do trabalho, um ainda para o código de acesso à sua conta bancária e finalmente outro para alguns nomes de escritores, música e preferências pessoais das quais nunca seria capaz de abandonar. A seguir, tirou a roupa, entrou na banheira e demorou eternidades. Enquanto se secava procurava o local. Encontrou-o. Pegou no manual e iniciou a operação de alteração das configurações. Sabia que depois de as alterar, não poderia repetir o procedimento pois, nos papéis que colara no espelho, não havia instruções para tal. Inspirou fundo e carregou no "OK". A partir desse momento, sabia que sempre que acordasse, a sua memória partia do zero; sempre que adormecesse, a memória iniciava um processo de "reset". Cada dia, seria agora, um novo começo, sem ficheiros temporários ou fragmentos passados. Amanhã nasceria de novo, e depois de amanhã, e daqui a dois dias. Sempre. Sem memórias. Sem planos possíveis. (Oldmirror)
.

- Ódio é uma palavra forte, não achas? [Peter Pan]
- O Amor também é! E as pessoas falam como se não significasse nada. [Wendy]

7/28/2011

435


"Sabes aqueles arrepios que parece que te sugam a pele ?", perguntou. A sensação era-lhe longínqua mas presente. O interior petrificado tinha vindo a alastrar para o exterior e a pele seguia o exemplo do coração ignorando o tudo o que não fossem golpes profundos capazes de lhe recordar que, outrora, foram esses mesmos arrepios que viriam a conduzir às maiores feridas. Mas a pergunta ecoava insistentemente. A recordação vinha acompanhada de pequenos degelos, ainda incapazes de grandes mudanças mas suficientes para, por instantes, as cicatrizes serem esquecidas dando lugar ao desejo de promessas quebradas. Fazia tempo que a luta incansável destinava-se apenas a reforçar as muralhas e a impedir que novas brisas circulassem, no entanto, uma simples existência ameaçava agora fazer ruir toda a fortaleza, provavelmente, apresentando-se ela própria como a mais forte defesa para travar o regresso dos ventos sul.
Nunca antes um baloiço fez tanto sentido. (Oldmirror)
.
O amor é tudo que ainda podemos trair.
- John le Carré

Etiquetas:

7/20/2011

434


Escondem-se as vontades em nome de regras que não inventámos. Ficamos prisioneiros de um desejo que julgavamos ter desvanecido. Impomos limites quando o corpo nos diz para os não ter. E a agitação renasce ao vermos a flor que brotou no deserto que teimosamente regamos quanto todos nos olhavam incrédulos. Colhe-la ou apenas olha-la; instala-se a dúvida e esperamos respostas. Há demasiado tempo quando queremos que o não haja e sossegamos o corpo quando ele nos pede que o deixemos tomar as rédeas. Enquanto isso ficam as palavras, fica o arrepio, o contar de minutos até que saibamos o que mais crescerá na areia que cultivamos. (Oldmirror)
.
Quantas noites há neste planeta?
quanta paz na escuridãode luz na sabedoria?
Quantos mortos até à morte?
Quanto? Quantos passos traçaram
com os vossos pés, com as vossas mãos
quantas notas ligaram
quantas vozes enlaçaram
neste deserto sem fim?
Quanto amor há no vosso amor
vós que traçais na areia
os esquemas dos vossos conhecimentos
os teoremas do esplendor
a fórmula infalível da existência?

Quantas noites há na vossa vida?
Quantos oceanos no vosso corpo?
Quantas ilhas moram
no arquipélago atlântido da vossa alma?
Quantas velas nos vossos olhos
e o fogo
onde o puseram?
No léxico das vagas?
Na gramática do céu
hoje tão enevoado?

Quantos rodeios e convenções
quantas indecisões fratricidas
por princípio, em teoria
quantas vozes entorpecidas
no capítulo do coração?

Quanto amor no silêncio impossível deste planeta?
Que fizeram de tudo isso
por entre as ditaduras físicas
zombarias animais
extravios de suburbanos
entre os intelectos arrefecidos
e as comédias fraternais?
Que fizeram do vosso amor?
Que fizeram das vossa vida? que disseram?

Quantos ramos de flores esmagados nas vossas mãos?
Quantas paixões alucinadas
quantas horas de gabarolice
por cada aventura inverosímil?
Quantas notas há no vosso amor?
Quantos objectivos?
Quantos talismãs nos vossos preconceitos?
Quantas fogueiras? Quanto rigor antropológico
quanta sinceridade
nesse desespero estruturado bem no mais fundo da cabeça
Quantas miragens exactas
nesta alegria empolada?
Quantas respirações controladas
no exercício da mentira
que nunca basta, nunca? Quanto amor há no vosso amor?
Quantos dias na vossa vida?
Quantas mulheres e quantos homens
no vosso exército?
E que fardo os obrigam a transportar? Quantas notas ligaram
quantas vozes enlaçaram
neste deserto sem fim? E afinal, porquê?

- Hélène Monette

Etiquetas:

7/14/2011

433



Demasiados anos a navegar na tempestade, impedidos de traçar rotas e destinos, habituamo-nos ao sal que nos seca as feridas que a ondulação ajudou a desferir. É-nos familiar o ensurdecedor rugido de ondas mais altas que a nossa existência e que apenas cavalgamos por delas não sabermos sair. Os nós no estômago há muito que passaram a ser alimento para um corpo moribundo que, esbracejando, foi riscando os dias no calendário inventado no que resta do mastro principal. Não há sol, mas os olhos agradecem; não há descanso, mas a cabeça não o quer. De navegantes passamos a resistentes, de aventureiros passamos a condenados. E o corpo moribundo foi riscando os dias no calendário inventado no que resta do mastro principal. Demasiados anos a navegar na tempestade, tantos e com tanto que, passado o tormento, sem ele já não sabemos viver e as pernas trabalhadas no balanço da inconstância, tremem agora que a terra firme as ampara. Regressamos à tempestade, esta agora que nos obriga a saber viver em terra. E no balanço final, que em breve chegará ao corpo que ultrapassou os dias do calendário inventado no que restava do mastro principal, continuaremos com a certeza que foi na tempestade que nos aprisionou em mar alto que estivemos mais próximos da felicidade que lemos nos livros antes da partida. (Oldmirror)
.
é preciso dizer
que não há mais nada a celebrar
nem os homens
nem as ideias
nem o tempo essa fenda
que te atravessava a vida
esse rasgão generoso
que te aproximava os céus
fechou-se estás perante o escuro silêncio
das coisas mortas
não abandones os espelhos
ainda que quebrados
eles são o palácio derradeiro
o último jardima gota impossível
de secar guarda aí a semente
as palavrasas vozes
as imagens porque o amor
é um minucioso trabalho do tempo
em direcção à morte
- Gil T. Sousa

Etiquetas:

7/13/2011

432


O escultor passa anos a esculpir pequenas peças. São interessantes, têm valor, mas não são "a peça" e por isso, facilmente o interesse desaparece, depressa as peças ficam inacabadas, porque a pedra não é a correcta ou porque, simplesmente o resultado final está longe de lhe provocar o entusiasmo necessário para continuar a investir os calos das suas mãos numa criação que pouco mais será do que...interessante. O ritual repete-se até ao dia em que encontra uma pedra que lhe parece diferente. O escultor dedica-se horas a fio a trabalhar a pedra e vai descobrindo que aquela poderá vir a ser "a sua obra". O entusiasmo cresce e a pedra corresponde. Aguenta as curvas e os desafios que, no calor da criação, o escultor vai arriscando. Nunca vira uma pedra assim, suficientemente mole para se deixar trabalhar, equilibradamente dura para se deixar esmigalhar sempre que o cinzel lhe traçava uma nova direcção. Foram anos a inventar cornucópias, altos e baixos relevos. Quase pronta a pedra partiu. Faltava apenas suavizar a superfície. E aquela que seria a pedra base da "peça" do escultor fizera-se em pedaços, era agora lixo. O escultor olhou em volta, viu as restantes obras e apercebeu-se que, inacabadas, abandonadas, eram bem mais do que a pedra-promessa que convidou ao limite e deixou-se quebrar, já estas, limitadas por natureza não permitiram altos voos mas estavam inteiras, reconfortantes ainda que pouco deslumbrantes. o escultor voltou à rua em busca de pedras mas foi mantendo "vivas" as definitivamente inacabadas. (Oldmirror)
.
You risked your life, but what else have you ever risked? Have you risked disapproval? Have you ever risked economic security? Have you ever risked a belief? I see nothing particularly courageous about risking one’s life. So you lose it, you go to your hero’s heaven and everything is milk and honey ’til the end of time. Right? You get your reward and suffer no earthly consequences. That’s not courage. Real courage is risking something that might force you to rethink your thoughts and suffer change and stretch consciousness. Real courage is risking one’s clichés.
- Tom Robbins

Etiquetas:

7/08/2011

431


Trata-se de acreditar e sentir. Poderemos sentir e não acreditar ou mesmo acreditar mas nem sequer chegarmos a sentir. Sentindo e acreditando, precisamos depois de apostar e seguir a aposta, no matter what... Sentindo e acreditando, e depois apostando, devemos estar preparados para tudo, e quando se diz tudo, é mesmo tudo, com a convicção de que levaremos a aposta até ao fim e, stick to the plan... De pouco valerão pequenas vitórias ou derrotas pontuais, porque sentindo e acreditando, tendo decidir apostar, o objectivo é um: chegar ao fim. Poderemos não chegar inteiros, poderemos trazer cicatrizes e um bolso cheio de gargalhadas, mas as contas fazem-se no fim e se lá chegarmos, se a meta for cruzada a aposta está ganha e o caminho, por muito inesperado que tenha sido ficou para trás e dar-nos-emos conta de que, afinal, foi tê-lo percorrido exactamente com todos os ziguezagues, mas sempre sentindo e acreditando, que constitui o prémio em qual tínhamos apostado. Almost a win-win situation... A única verdadeira derrota, mas a mais comum, é a desistência, por ela têm havido os mais comuns jackpot nos quais os desistentes, os descrentes, não poderão apostar. É que, quase sempre, trata-se de uma one deal chance. (Oldmirror)
.
People think a soul mate is your perfect fit, and that’s what everyone wants. But a true soul mate is a mirror, the person who shows you everything that’s holding you back, the person who brings you to your own attention so you can change your life. A true soul mate is probably the most important person that you will ever meet, because they tear down your walls and smack you awake. But to live with a soul mate forever? Nah. Too painful. Soul mates, they come into your life to reveal another layer of yourself to you, and then they leave. And thank God for it.
- Elizabeth Gilbert

Etiquetas:

7/05/2011

430



Existe mais magia no desencontro. A imaginação leva-nos a terrenos mais agradáveis e não abre espaço a desilusões ou confrontos com os defeitos e falhas de uma existência de carne e osso. Há desencontros que nos salvam, desencontros que nos afastam de encontros suicidas e doentios. Há desencontros que sabemos, de antemão, que poderão durar anos, mas tornar-se-ão encontros pois a imaginação surge tão fértil que apenas descansará quando o desencontro se transformar na experimentação prática das lições tomadas na imaginação. Os desencontros mantêm-nos vivos, mantêm-nos sedentos e curiosos, fazem-nos palpitar, procurar. Há desencontros que não são mais do que pontos de partida para o próximo capítulo. Há desencontros que ainda cultivo e outros tantos pelos quais anseio. (Oldmirror)

7/01/2011

429


Reaprender a fazer amor é preciso. Reaprender a seguir em frente, obrigando o corpo esquecido a recordar e a mente teimosa a aceitar. Aceitar caminhando. Aprender que a esperança não deve nunca ser a última a morrer, é preciso que morra primeiro. É preciso que morra. Morreu! Restam horas de purgatório e anos virgens para desflorar... (Oldmirror)
.
Your life is your life don’t let it be clubbed into dank submission. Be on the watch. There are ways out. There is a light somewhere. It may not be much light but it beats the darkness. Be on the watch. The gods will offer you chances. Know them. Take them. You can’t beat death but you can beat death in life, sometimes. And the more often you learn to do it, the more light there will be. your life is your life. Know it while you have it. You are marvelous the gods wait to delight in you.
- Charles Bukowski

Etiquetas:

Estou no blog.com.pt - comunidade de bloggers em língua portuguesa
Oldmirror© 2005-2011 All Rights Reserved.