5/30/2011

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Pior que a desilusão, a indiferença ou até o ódio é o arrependimento. Provavelmente o pior sentimento do Mundo, provavelmente o mais raro, provavelmente aquele que julgaria ser possível evitar durante toda uma vida mas que, gota a gota, parece fazer questão de se apresentar. Para já estranho e luto para que não se entranhe. (Oldmirror)

Caí no silêncio há vários dias. Quero falar-te das horas incandescentes que antecedem a noite e não sei como fazê-lo. Às vezes penso que vou encontrar-te na rua mais improvável, que nos sentamos diante do rio e ficamos a trocar pedaços de coisas subitamente importantes: a tua solidão, por exemplo. Mas depois, virando a esquina, todas as esquinas de todos os dias, esperam-me apenas as aves que ninguém sabe de onde partiram.
- Vasco Gato (autopsiado)

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5/26/2011

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É chegado o momento em que cada palavra é somente mais um gesto da borracha que lentamente apaga o contorno de um corpo, mais uma brisa que afasta a permanência de um cheiro, mais um tijolo que ajuda a fechar um peito aberto, mais uma página gasta sem que o futuro se escreva, mais uma parede que impede o abraço. É chegado o momento em que a mordaça poderá salvar, o momento em que se escrevem gigantes volumes explicando a vida ou a vida recomeça a ser vivida. Oldmirror

Não, as palavras não fazem amor
fazem ausência.
Se digo água, beberei?
Se digo pão, comerei?
- Alejandra Pizarnik

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5/16/2011

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O amor é perigoso. Aceitá-lo significa entrar numa viagem de difícil retorno. Aceitá-lo totalmente significará, no limite, estarmos dispostos a morrer por ele e, pelo meio, viver por ele, lutar por ele trabalhar para ele. O amor é duro e, por isso, poucos começam e terminam a viagem sem dizer, enquanto voltam as costas: "o amor não chega". O amor "obriga" ao despojamento, "obriga" à incondicionalidade e à cumplicidade, aceitá-lo e senti-lo só é possível desta forma. O amor é invisível e inatingível quando olhado através de uma redes de preconceitos, de egoísmos ou de condições, atingi-lo implica despir o colete à prova de balas e oferecer o peito, oferecer o corpo e entregar a alma. O amor está fora de moda, assim como a honra e a nobreza ou tudo o que exige demasiado de nós próprios e direcciona-se aos outros; dá trabalho, sofre-se, logo os benefícios tornam-se questionáveis. O amor leva à partilha completa, sem momentos para o "eu" ou sequer para o "tu", somente para o "nós". Há demasiadas definições de amor, é verdade, a minha, a única, creio, é a doentia, a fundamentalista, que não se confunde com a tradicional, se é que ela existe, nem mesmo com as contemporâneas, que insisto em recusar.
O amor é perigoso e amar perigoso é. É um processo doloroso, quase sempre incompleto, por dificilmente aceitarmos prescindir do "eu", esquecermo-nos do "eu", lembro-me de dizer, numa conversa semelhante, que esta característica é próxima à passagem do escudo a euro; demorá uma eternidade para que pensemos apenas em euros, esquecendo totalmente a conversão para escudos, há sempre um momento em que o fazemos e se o fazemos, não estamos esquecidos do escudo, ou seja, do "eu". Eventualmente, saber amar implica uma aprendizagem para mais de uma vida. É por sermos imperfeitos que criamos definições daquilo que é perfeito, traçando-as como metas que roçam o utópico e o inatingível. Para amar, segundo a perfeita definição, serão precisos dois, logo, a equação duplica no seu grau de dificuldade e o equilíbrio espelha a utopia que a definição encerra. Eu posso amar, mas serei mal sucedido, se o outro não o fizer, e se o fizer mas não de forma igual, continuarei a amar de forma incompleta.
Mas com base apenas na minha definição de amor, este, uma vez atingido, tornar-nos-ia praticamente deuses a viver numa realidade para além da realidade. Sensações únicas, qualidade ímpares, resistências inimagináveis recompensas incalculáveis. Esse amor, uma vez atingido, fará do sofrimento que não desaparece, um ínfimo pormenor se comparado com esse praticamente indescritível estado de espírito. Mas se o digo, deve-se apenas à minha definição pois vivê-lo ainda não foi meu privilégio, mas houve momentos em que essa luz surgiu ao fundo do meu túnel, demasiado trémula para me iluminar.
- Oldmirror

Descobri o teu blog há muito pouco tempo e já o li de uma ponta a outra. Tenho andado a ler muitos parecidos e chego à conclusão que há imensas definições de amor, de amar, muitas delas contraditórias. Aqui encontrei, no meio de tantas outras coisas, mais pistas para uma outra definição. Tem sido um passatempo que me tem fascinado, recolher definições de amor e de amar, quem sabe um dia não consigo junta-las e fazer uma definição universal. Resolvi mandar este mail não para dar os parabéns pelos textos e pelo conceito ou sequer escrever elogios, mas para fazer um desafio que me poderia ajudar na procura do meu Graal. Queres escrever-me a tua definição de amor, de amar? Caso aceites, podes responder-me para este mail. Obrigada.

- L. via mail

5/10/2011

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PARTE II
No dia em que proferira aquela frase sabia que fora a morte que sentenciara. A decisão estava tomada e fugiu porque lhe faltara a coragem para a ditar. Queria matar mas não o queria dizer. Decidira então fazê-lo da única forma que se lembrara e que evitaria o embaraço de ter que o anunciar.
Soube agora que a morte estava consumada. Primeiro sorriu. Conseguiu matar sem que para isso tivesse que soltar uma gota de suor. À vista desarmada era inocente, ninguém poderia garantir que o golpe fatal tinha sido desferido. Estava livre.
Mas a liberdade depressa se tornou em pesadelo. Não lhe saía da cabeça. E se não tivesse matado? E se tivesse matado sem ter precisado de fugir? E se tivesse ficado?
E se ainda fossem vivos... os dois?
- Oldmirror

Não basta amar alguém. É preciso amar com coragem. É preciso amar de tal modo que nenhum ladrão, ou má intenção, ou lei, lei divina ou deste mundo, possa seja o que for contra esse amor. Não nos amámos com coragem... foi esse o mal. E a culpa é tua, porque a coragem dos homens é ridícula em matéria de amor. É trabalho vosso, o amor...
- Sándor Márai

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5/09/2011

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PARTE I
Um dia disse-lhe:
- Vou embora por uns tempos e quando voltar decidirei se irás morrer.

Desde esse dia nunca mais viveu. Passou os dias à espera que voltasse para saber se morreria ou não. Todos os dias, sentava-se à soleira da porta à espera de ver o vulto que significaria o veredicto final. Poucas vezes se lembrava do resto, poucas vezes entrava em casa para comer, beber ou simplesmente descansar o corpo. Os seus dias eram passados naquela soleira, à espera. Desde que ouvira aquela sentença a sua cabeça não mais pensou noutra coisa que não fosse... a chegada. Os mais diferentes cenários eram o passatempo: virá hoje? virá um dia? morrerei? viverei?
Foram anos e anos passados na soleira e o vulto nunca surgira ao fundo da estrada. Foram anos e anos até se convencer que, se calhar, o veredicto nunca chegaria e que por isso, viveria. Mas enquanto esperou, os anos passaram e pouco lhe restava para viver.
E no momento da morte o último pensamento foi para o vulto. Talvez naquela frase e na falta de resposta estivesse a própria sentença: morrerás da tortura de não saberes se morres ou vives. Dificilmente se lembraria de uma morte tão dolorosa.
- Oldmirror

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.
O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.
Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.
Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?
Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.
Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?
Quantos Césares fui!
Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
- Álvaro de Campos

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5/02/2011

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Foram milhares de lápis que durante a sua vida levara até à mais ínfima gota de carvão. Agora que as mãos lhe recusavam a força necessária para os continuar a segurar entre os dedos, apercebeu-se que terminaria a sua existência sem, no entanto, terminar a frase que sempre procurara finalizar. (Oldmirror)

Four years ago or maybe five,I was talking with Hidekazu Yoshida. We were on the train from Donaueschingen to Cologne. I mentioned the book by Herrigel called "Zen in the Art of Archery"; the melodramatic climax of this book concerns an archer’s hitting the bull’s eye though he did so in total darkness.Yoshida told me therewas one thing the author failed to point out, that is, there lives in Japan at the present time a highly esteemed archer who has never yet been able to hit the bull’s eye even in broad daylight.
- John Cage

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Nunca o tempo foi propositadamente tanto para lembrar que me resta tão pouco. (Oldmirror)

One evening when I was still living at Grand Street and Monroe, Isamu Noguchi came to visit me. There was nothing in the room (no furniture, no paintings). The floor was covered, wall to wall, with cocoa matting. The windows had no curtains, no drapes. Isamu Noguchi said, “An old shoe would look beautiful in this room.”
- John Cage

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