11/30/2006

166



Olhar para baixo, olhar para cima, escolher o destino, decidir o passo. Sentir o vento, antecipar a água, abrir os braços. Tentar voar, mergulhar, passar um minuto na eternidade da descida, abdicar das defesas. Saltar de olhos abertos, saltar mais fundo na vida, descer vertiginosamente na vontade de ficar. Deixar correr os sangue no corpo, suster a respiração, romper o espaço, furar o ar. Trocar o ar pelo mar, trocar o certo pelo incerto, trocar. Cair. (Oldmirror)

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo
a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
Muita vez vim
esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier
hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere.
Talvez apareça

- Mário Cesariny

Etiquetas:

11/27/2006

165



Ah, se as pessoas soubessem. Se soubessem como são inúteis e desajustadas as palavras que agora surgem. Se soubessem que seria o silêncio a maior homenagem. Se soubessem que a liberdade que investaste era feita de palavras que não conheciam catálogos ou explicações, muito menos elogios circunstanciais. A vida é que é a vida, enquanto a morte nada é, logo as palavras não são para aqui chamadas, muito menos as vivências. Não foi assim que imaginaste que iria ser, não com a semelhança a tudo o que rejeitaste. Nada diferente, porque as pessoas acabam sempre por ser iguais, não na explicação da vida, mas na aprendizagem da morte. Como te fizeram igual a nada. Como te fizeram parecido com tudo sem sequer saberem que farias tudo menos isso. Nem o caixão souberam virar do avesso, nem o amor, a liberdade e a poesia souberam escrever à navalha naquela madeira igual a tantas outras. Como seria diferente se tivesses sido tu a fazer a tua própria caminhada. E os cigarros, esqueceram-se dos cigarros.

- Oldmirror

11/26/2006

164



Miguel Gonçalves Mendes — O Mário tem medo da morte?
Mário Cesariny — Sou capaz de ter, um bocadinho. Não sei o que é. (ri). Mas gostava de ter daquelas mortes boas... a gente deita-se para dormir e nunca mais acorda, isso é que é bom.Mas tenho medo sobretudo da degradação física, isso sim! Porque eu já sofro um bocadinho, vá lá, isso é que é muito chato, isso já é a morte a trabalhar, a trabalhar. A morte propriamente não existe. Se morreu, morreu... é o momento! Tens medo da morte tu?

- verso de autografia / mário cesariny /assírio & alvim

Etiquetas:

11/24/2006

163



Caminhar saboreando cada passo dado nas ruas escurecidas pelas nuvens carregadas de desgosto e de lágrimas ainda por chorar. Esvaziar o peito de ar e deixar que a alma adormeça para olhar em volta e ver todas as outras almas. Olhá-las com atenção, ver cada sorriso, cada ruga, cada angústia revelada no gesto nervoso de quem ainda não escolheu a direcção a seguir. Olhar a vida dos outros em cada olhar fixado no chão onde moram os pensamentos de vidas mais cinzentas dentro de quatro paredes que as nuvens pesadas fora delas. Seguir lentamente. Virar as esquinas com a certeza de não encontrar nada de novo. Ver a vida pulsar por fora porque por dentro há muito que o coração deixou de pular para bater num cadenciado que anuncia a certeza de corpos adormecidos, apenas resistindo. Há vida lá fora com morte por dentro. Quantos sorrisos são lágrimas? Quantas certezas são dúvidas? Quantas mudanças são só continuidades? Quantas qualidades apregoadas são cortinas do amor próprio atraiçoado? Afaga-las, é preciso afaga-las. (Oldmirror)

My love and I, we work well together
But often we're apart
Absence makes the heart lose weight,
Till love breaks down, love breaks down
Oh my, oh my, have you seen the weather
The sweet September rain
Rain on me like no other
Until I drown, until I drown
When love breaks down
The things you do
To stop the truth from hurting you
When love breaks down
The lies we tell,
They only serve to fool ourselves
My love and I, we are boxing clever
She'll never crowd me out
Fall be free as old confetti
And paint the town, paint the town
When love breaks down
You join the wrecks
Who leave their hearts for easy sex
When love breaks down

- Paddy McAloon

Etiquetas:

11/21/2006

162



Num bosque tremendamente encantado, a princesa procurava decorar o mundo. Impaciente, fazia dos pequenos dedos a extensão dos seus doces e curiosos olhos. Nunca passava muito tempo sem que a sua atenção se desviasse de uma enorme árvore para um minúsculo bichinho de conta e era sempre capaz de franzir o sobrolho ou deixar escapar um sorriso quer se tratasse do mais belo dos quadros ou da mais banal nuvem irrequieta. A princesa crescia ao mesmo ritmo dos caracóis do seu cabelo e o mundo não parava de a surpreender e nem naquele bosque as explicações que encontrava para os mais complexos enigmas da natureza deixavam de ser as mais evidentes e simples verdades. É que a princesa não aprendera ainda o significado da palavra impossível, nem ouvira sequer falar nas letras que formam termo complicado. Para ela um mistério é uma coisa mágica e se é mágica é bonita. Para ela o estranho é interessante e o assustador não passa de uma floresta, também ela encantada, escura mas irresistível. E lá continua ela a decorar o mundo sem que um obstáculo seja mais do que um simples galho de árvore sobre o qual se pode saltar. (Oldmirror)

11/20/2006

161



E depois vem-me com a história do regressar ao passado para tudo fazer diferente, para remendar os buracos cavados com a ausência, as ausências criadas de medos, os medos feitos do desconhecido que nunca foi capaz de encarar. E depois vem-me com a história de voltar a trás e reescrever a história, mudando-lhe as vírgulas, os pontos e as interrogações, mas deixando intactas as exclamações e as reticências que foram marcando o compasso de uma existência longínqua nada preparada para arriscar o futuro, quanto mais para reconstruir o passado. E depois vem-me com com a história de um imenso vazio, uma espécie de buraco negro em que caiu por saber agora que o passado, na altura presente, nunca deveria ter sido construído com as reservas de quem julga ter tudo a perder mas nunca reparou que nada tinha em si que pudesse perder a não ser o agora imenso vazio, na altura terra fértil e virgem a quem as sementes foram recusadas. E agora vem-me com a história de alguém que já não tem história, lamenta o passado e não vê o futuro. O futuro já foi feito, é outra história. (Oldmirror)

You surely are a truly gifted kid
But you're only good asThe last great thing you did
And where've you been since then
Did the schedule get you downI hear you've got a new girlfriend
How's the wife taking it ?
If it's uphill all the way you should be used to it by now
You must know me, Father it's your son
And I know that you are proud of everything I've done
But it's the wonders I perform,
Pulling rabbits out of hats
When sometimes I'd prefer
Simply to wear them
If it's uphill all the way you should be used to it and say
My back is broad enough sir to take the strain and it's
Hello mother, it's your son and aren't you proud, of all I've done
But I'm turkey hungry, I'm chicken free, and I can't breakdance on your knee
But it's "stay right there son, baby do", while I is itchin' for something new
So watch me hawkeye and understand the force of will, the sleight of hand
Movin' the river, I'm turkey hungry, I'm chicken free and I can't breakdance on your knee
Movin' the river, bucket by spoon, and do you think that they'll like me when they learn what I do
Movin' the river, money for jam, and it takes such an effort to stay where I am...

- Paddy McAloon

Etiquetas:

11/17/2006

160

Uma prisão em que entrei e de onde me recuso a sair.



[Montagem "2046", de Wong Kar-wai + set de Lali Puna´s cover of "Together Electric Dreams"]

11/16/2006

159



E se já tudo foi dito? Se já não existe uma única emoção, um único lamento que mereça uma palavra a mais? E se o que resta não é mais do que a simples existência sem a tempestade da reflexão ou o sobressalto da dúvida permanente? E se fosse perdida a vontade de fazer um pouco mais do que já foi feito e apenas passasse a fazer sentido pairar ao sabor de um vento que não se sabe se virá? Não há nada a perder porque tudo foi já perdido e assim, sem mais, é tempo de recomeçar, voltar a dizer: vende-se. Fazer as malas e partir, carregando-as até se ouvir: abre-as, arruma as tuas coisas e fica durante uns tempos. (Oldmirror)

I spend the days with my vanity
I'm lost in heaven and I'm lost to earth
Didn't give you minutes not even moments
All my life in a tower of foil
Shaded feelings, don't believe you
When you were there before my eyes
No one planned it took it for granted
I count the hours since you slipped away
I count the hours that I lie awake
I count the minutes and the seconds too
All I stole and I took from you
But Bonny don't live at home, he don't live at home
Words don't hold you, broken soldiers
All my silence and my strained respect
Missed chances and the same regrets
Kiss the thief and you save the rest
All my insights from retrospect
But Bonny's not coming home, he don't live at home
Save your speeches, flowers are for funerals

-Paddy McAloon

Etiquetas:

11/10/2006

158



Esquecer o sabor de uma pele, o gosto de um beijo, o arrepio aconchegante do suor libertado nos lencóis que atrapalham. Viver de olhos fechados para a carícia prometedora, o olhar rendido, a troca de posições num campo de batalha onde o inimigo é o fim. Voltar atrás. Riscar da memória o cheiro intenso das horas intensas, as marcas pintadas e as roupas arruinadas. Parar de caminhar. Libertar os pulmões sem que se soltem as palavras ditas em tom ofegante, os risos ansiosos daquilo que ainda estava para vir, o ar consumido em dobro ou em triplo. Sossegar. Esperar pelo dia seguinte. Esperar pelo sussurrar no ouvido de novas vertigens que adivinhem o futuro, que fiquem no futuro, que esqueçam o caminho de volta. Tocar de novo. Apostar no escuro sem hesitar, sem considerar a palavra perder, sem olhar para trás porque de lá nada se trouxe. Construir. Com um pouco mais de um corpo. (Oldmirror)

I've got six things on my mind you're no longer one of them
Desire as a self-figured creature who changes her mind ?
They were the best times, the harvest years with jam to lace the bread
So goodness, goodness knows why I'd throw it to the birds
But there it is, and there we are
And all I ever want to be is far from the eyes that ask me
In whose bed you gonna be and is it true you only see
Desire as a self-figured creature who changes her mind ?
It's perfect as it stands so why then crush it in your perfect hands ?
Desire as a self-figured creature who changes her mind ?
I've got six things on my mind you're no longer one of them
So tell me you must have thought it all out in advance
Or goodness, goodness knows why you'd throw it to the birds
You mock the good things, you play the heart strings, play them one by one
But there it is, and there we are
And all I ever want to be is far from the eyes that ask me
In whose bed you gonna be and is it true you only see
Desire as a self-figured creature who changes her mind ?

- Paddy McAloon

Etiquetas:

11/09/2006

157



Insistia em procurar o arco-iris depois da tempestade e por isso procurava as tempestades. Nunca chegou a encontrar o arco-iris que procurava mas não teve dificuldades em encontrar as tempestades. Por dentro passou a sentir-se a própria tempestade, por fora o arco-iris enfeitava-o. Um dia esqueceu-se que era o arco-iris que tentava encontrar e passou a procurar apenas as tempestades. Sentiu-se melhor, agora encontrava sempre o que procurava. (Oldmirror)

Deste-me a intempérie,
a leve sombra da tua mão
a passar pela minha cara.
deste-me o frio, a distância,
o café amargo da meia-noite
entre mesas vazias.

- Júlio Cortázar

Etiquetas:

11/07/2006

156

Estou cá dentro, dentro das vozes não da chuva. Mas seria lá fora com a voz da chuva que queria estar, era lá fora que entenderia o que dizia, não cá dentro onde as vozes caem sobre mim e me deixam mais gelado que a chuva ali fora. Aqui dentro há menos vida do que a vida que reparo na chuva. Sinto as palavras mais longe e as gotas mais perto e fico molhado, com o corpo trémulo com o som das palavras que circulam aqui dentro e procuro aquecer-me do outro lado do vidro onde num discurso eloquente a chuva me convence a sonhar. Vivo do outro lado do vidro mas o corpo que me suporta mantém-se deste lado onde só o olhar tem direito a sair para o mundo. Chove lá fora. Chove em mim. (Oldmirror)

11/04/2006

155



Desconfio que o fim já tenha chegado há muito sem que se fizesse anunciar. Distraído continuou a viver sem que o fim que agora o acompanhava tivesse coragem para o avisar. Porque a vida que vivia era igual ao fim para onde se mudaria assim que o fim se fizesse anunciar. Despojado de vida mas vivendo até ao fim, ele esperava que o fim o viesse buscar porque ali já nada fazia diferente daquilo que seria a sua existência após o fim, mas o fim já tinha chegado e ficara sem coragem para o levar, sem saber que ele não teria mais coragem para ali ficar. (Oldmirror)

Não tem cigarro
Acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim
eu não sei para onde mesmo que eu vou
Mas vou até ao fim.
- Chico Buarque

Etiquetas:

11/03/2006

154



...duas existências feitas das mesmas palavras e dos mesmos sentidos. Duas existências que se cruzam na troca de letras e que vão sentindo que mesmo sem infringir a lei a distância se vai encurtando centímetro a centímetro, letra a letra, borboleta a borboleta. E a história não acaba aqui. Sigo a rota dos roazes, mergulho de cabeça e evito perder tempo a respirar, mas nado lentamente, como quem dorme, não dormindo, mas esperando, tentando não tentar adivinhar o final da história. (Oldmirror)

Vejo esta situação, com a nitidez do fotógrafo:
a cabeça pousada na mão direita, um cigarro
preso aos dedos, o olhar perdido em quase
nada. Invento a imagem que se forma
na tua cabeça, a partir desse nada: uma
nuvem; e por dentro dessa nuvem, todas
as formas do sonho. Porém, o céu não
te perturba o pensamento; nem os ventos
que trazem e levam as nuvens, como
barcos, no oceano da tua memória. E
volto à situação inicial: tu, sentada à
mesa, para que eu te pudesse fixar
com a nitidez do fotógrafo, olhas-me,
como se eu estivesse à tua frente; e
o teu olhar apaga o tempo e a distância,
desfocando a imagem, como se o fumo
do cigarro te envolvesse o rosto, e
te trouxesse de volta a mim, como
nuvem, ou sonho, que o vento dissipa.
- Nuno Júdice

Etiquetas:

Estou no blog.com.pt - comunidade de bloggers em língua portuguesa
Oldmirror© 2005-2011 All Rights Reserved.