5/29/2008

262



Um Portugal de zombies. Um Portugal sem vértebras, dobrado sobre si próprio, incapaz de gritar, de fazer, de mostrar, por uma só vez, a fibra herdada. Um Portugal envergonhado, obeso, anestesiado, preso, acomodado. Um Portugal ridículo, manipulado, ensonado, de braços caídos. Um Portugal que se abandonou a si próprio, que fechou as cortinas, ligou a televisão, embebedou-se com bandeirinhas e impludiu-se em dez milhões de ilhas que navegam ao sabor de um vento que as levará para um triste fim. Um Portugal que esqueceu a palavra revolta, o acto de protestar, a força de se manifestar, o orgulho de resistir. (Oldmirror)

Venham mais cinco, duma assentada que eu pago já
Do branco ou tinto, se o velho estica eu fico por cá
Se tem má pinta, dá-lhe um apito e põe-no a andar
De espada à cinta, já crê que é rei d’aquém e além-mar
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda, havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira, deitar abaixo
O que eu levantei
A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
Bem me diziam, bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra, quem trepa
No coqueiro é o rei
A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
- José Afonso

A menina distrai-se no Centro Cultural de Belém, ao som dos mais virtuosos músicos de visita ao rectângulo. A senhora entretem-se nas promoções da mega-loja do vizinho espanhol. O senhor colecciona "six packs" enquanto aguarda o apito inicial. O teen masturba-se com os recentes gráficos da PSP. A teen depila-se suspirando pelo surfista lá do bairro. O pobre vasculha o contentor capaz de matar quem se segue na fila do lixo. O rico conta os tostões que o levarão numa viagem de trabalho à favela brasileira onde o espera uma esfomeada morena fogosa que lhe acalma a crise dos 40. Não há tempo. O país morre, mas não há tempo para lhe fazer respiração boca-a-boca. Que se lixe o país, tenho tanto que fazer e amanhã tenho que acordar cedo... (Oldmirror)

revolta
s. f.,
acção ou efeito de revoltar ou revoltar-se;
sedição;
levantamento;
tumulto;
fig.,
grande perturbação moral;
indignação;
prov.,
curva de rio ou de caminho.



resistir
do Lat.
resistere
v. int.,
opor resistência;
não ceder;
fazer face a;
defender-se;
recusar-se;
aguentar-se;
não sucumbir;

subsistir.

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5/27/2008

261



- Não tenho mais nada para dar.
- Ainda tens a roupa que vestes.
- Toma-a, também.
- Não chega!
- Sobra-me pouco.
- Mesmo assim...
- Resta-me a pele, o corpo e a alma.
- Ficarei com eles também.
- Deixarei de existir, então.
- Existirás em mim. Não te chega?
- Sempre chegou. Leva-os.
.
- Como te sentes?
- Não sinto.
- Pois não, deste-me tudo.
- Sim.
- Mas ainda vives...
- Preferes que morra?
- Não podes. Existes em mim. Matar-me-ias.
(Oldmirror)

a casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

- José Tolentino de Mandonça

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5/23/2008

260



Caminho dentro de ti, planto-me, cresço-me, pairo e faço barulho, sem que me sintas. Sussuro-te, falo-te, instalo-me nos teus sonhos, sem que me oiças. Embalo-te, aconchego-te, cubro-te, sem que me percebas. Dou-me, vendo-me, ofereço-me, sem que me licites. Vivo. sobrevivo, morro, sem que me olhes. (Oldmirror)
deito-me à sombra das tuas pernas
e o corpo arde em todos os movimentos
que não ousaste prolongar
na toalha branca da minha pele
deste lado a dor
é completamente minha
e por assim dizer inútil
era capaz de jurar
que nem me viste
- Alice Vieira

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5/19/2008

259



De queda em queda, caiu naquele quarto de hotel de onde não pensava conseguir mais sair. Havia uma tempestade lá fora e aquelas paredes pareciam-lhe seguras, confortáveis. Enquanto limpava a cabeça molhada depois de ter escapado por pouco ao dilúvio que se abatera sobre Split desviou o olhar daquela janela, onde ainda rodava o repetitivo filme do céu relampejante, e na cama respirava-se. Havia um par de lençóis quentes, um corpo, uma visão solarenga contrastante com a, agora, distante cidade croata. Havia a certeza que não voltaria a sair daquele quarto onde a tempestade dos corpos abafaria a trevoada balcânica e pediria a eternidade. As tempestades tinham agora dois epicentros e Split deixaria de ser um mero postal ilustrado. (Oldmirror)

I have come 500 miles just to see a halo
Come from st. Petersburg, Scarlett and me
Well I open my eyes, I was blind as can be
When you give a man luck, he must fall in the sea
And she wants you to steal and get caught
For she loves you for all that you are not
When you're falling down, falling down
When you're falling down, falling down, falling down
You forget all the roses, don't come around on sunday
She's not gonna choose you for standing so tall
Go on and take a swig of that poison and like it
And don't ask for silverware, don't ask for nothing
Go on and put your ear to the ground
You know you will be hearing that sound......falling down.
You're falling down, falling down
Falling down, falling down, falling down
When you're falling down, falling down, falling down
Go on down and see that wrecking ball come swinging on along
Everyone knew that hotel was a goner
They broke all the windows, they took all the door knobs
And they hauled it away in a couple of days
Now someone yell timber and take off your hat
It's a lot smaller down here on the ground
You're falling down, falling down, falling down
Falling down, falling down, falling down
Someone's falling down, falling down, falling down
Falling down, falling down, falling down
- Tom Waits

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5/12/2008

258



Quero que entres em mim e faças a viagem de volta. Quero que conheças as estradas e os carris que te levam ao destino há muito traçado e ao qual nunca soubeste chegar. Percorre-me sem limites de velocidade, sem tempo para o fazeres, mas fa-lo. Não atropeles as emoções, nem anuncies a chegada, apenas chega, viaja, conquistas os quilómetros que há para conquistar e não lhes pelo retrovisor nem te assustes se forem mais os escuros túneis que as doces paisagens que embalam o caminho. O que te falta para carregares no pedal? (Oldmirror)
Porque escondes a noite no teu ventre?
Nesse país de sombra onde se calam as palavras.
Aí, no escuro lago onde estremece a flor da amendoeira
E onde vão morrer todos os cisnes.
Eu desvendo a tua dor, o teu mistério
De caminhares assim calada e triste,
Quando viajo em ti com as mãos nuas e o coração louco
No mais fundo de ti, onde só tu existes.
Oh, eu percorro as tuas coxas devagar
Dobrando-as lentamente contra o peito
E penetro em delírio a tua noite
Esporeando éguas no teu sangue.
De onde me chegam estas palavras?
- Joaquim Pessoa

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5/09/2008

257



Porque a vontade de me fixar no mais simples ganha força. Porque o interesse pelos pormenores é maior. Porque sempre que os vejo fazem-me sorrir. Porque sempre que foco mais longe, mais quero desfocar o que vejo. Porque sempre preferia cor ao preto e branco, simplesmente porque não há apenas o preto e o branco. Porque se fixar o perto e ele for para longe sempre deixará algo preso em mim. (Oldmirror - 03.10.2004)

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
- Joseph Brodsky

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5/07/2008

256


Sometimes, home is just a feeling.

Could be Jerusalem
Or it could be Cairo
Could be Berlin
Or it could be Prague
Could be Moscow
Could be New York
Could be Llanelli
And it could be Warrington
Could be Warsaw
And it could be Moose Jaw
Could be Rome
Everybody got somewhere they call home
When they overrun the defences
A minor invasion put down to expenses
Will you go down to the airport lounge
Will you accept your second class status
A nation of waitresses and waiters
Will you mix their martinis
Will you stand still for it
Or will you take to the hills
It could be clay
And it could be sand
Could be desert
Could be a tract of arable land
Could be a house
Could be a corner shop
Could be a cabin by a bend in the river
Could be something your old man handed down
Could be something you built on your own
Everybody got something he calls home
When the cowboys and Arabs draw down
On each other at noon
In the cool dusty air of the city boardroom
Will you stand by a passive spectator
Of the market dictators
Will you discreetly withdraw
With your ear pressed to the boardroom door
Will you hear when the lion within you roars
Will you take to the hills
Will you stand
Will you stand for it
Will you hear when the lion within you roars
Could be your father
And it could be your mother
Could be your sister
Could be your brother
Could be a foreigner
Could be a Turk
Could be someone out looking for work
Could be a king
Could be the Aga khan
Could be a Vietnam vet with no arms and no legs
Could be a saint
Could be a sinner
Could be a loser
Or it could be a winner
Could be a banker
Could be a baker
Could be a Laker
Could be Kareem Abdul Jabar
Could be a male voice choir
Could be a lover
Could be a fighter
Could be a super heavyweight
Or it could be something lighter
Could be a cripple
Could be a freak
Could be a wop, gook, geek
Could be a cop
Could be a thief
Could be a family of ten living in one room on relief
Could be our leaders in their concrete tombs
With their tinned food and their silver spoons
Could be the pilot with God on his side
Could be the kid in the middle of the bomb sight
Could be a fanatic
Could be a terrorist
Could be a dentist
Could be a psychiatrist
Could be humble
Could be proud
Could be a face in the crowd
Could be the soldier in the white cravat
Who turns the key in spite of the fact
That this is the end of the cat and mouse
Who dwelt in the house
Where the laughter rang and the tears were spilt
The house that Jack built
Where the laughter rang and the tears were spilt
The house that Jack built
Bang, bang, shoot, shoot
White gloved thumb
Lord thy will be done
He was always a good boy his mother said
He'll do his duty when he's grown
Yeah
Everybody's got someone they call home.
- Roger Waters

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