E quando julgamos que o punhal não pode mais perfurar-nos as entranhas, quando pedimos clemência e nos despimos de orgulho esperando por um derradeiro milagre que nos devolva a vida, eis que, com requintes inimagináveis de malvadez, o carrasco, cobardemente agora de cara escondida, roda a lâmina afiada dentro daquele coração que outrora o abrigou. Adivinhamos que o recital de tortura seguirá com as mãos que antes nos afagavam a pele a espalharem o sal nas feridas que foram plantando enquanto ingénuos traçávamos no mapa o caminhos que nos levaria ao futuro. Derrotados temos, porém, um breve sopro que nos deixa continuar a sonhar o mesmo que antes sonháramos, no entanto, quando olhamos para os olhos de quem nos apunhala profundamente, deixámos de ver o olhar de quem nos habitou o coração, enquanto indefeso, um olhar sereno e de esperança mas capaz de matar e morrer para que conseguíssemos alcançar o futuro. Agora o que vemos é a ausência, o esquecimento e um incompreensível brilho enquanto nos observa a sangrar, enquanto avalia o estado em que nos deixou. Por baixo da cobarde máscara, certamente, mais genuína do que o rosto fresco de outrora, é provável até que exista um indisfarçável sorriso. Mas mesmo mortos continuaremos a saber que é possível voltar a roçar a perfeição e ficar mais perto do fim da estrada traçada no mapa que nunca foi rasgado. (Oldmirror)
Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
- E ser, depois de vir do coração
Um punhado de cinza esparso ao vento!...
Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento...
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!
Quem me dera encontrar verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto.
- Florbela Espanca