1/30/2011
406
- O que me dás para me teres de volta?
- Dou-te o corpo, dou-te o sangue, dou-te a vida, dou-te...o coração!
- Não chega. Entrega-me também essa felicidade. (Oldmirror)
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me restade
pois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
e ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido
- Ruy Belo
Etiquetas: Ruy Belo
1/20/2011
405
Há vidas que se perdem pela incapacidade de viverem o que existe com a obsessão em viverem o que gostariam que existisse. (Oldmirror)
Aquilo a que muita gente chama amar consiste em escolher uma mulher e casar com ela. Escolhem, juro-te, já os vi fazerem-no. Como se se pudesse escolher no amor, como se amar não fosse um raio que quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio. Não se pode escolher Beatriz, não se pode escolher Julieta. Não podemos escolher a chuva que nos vai encharcar até os ossos quando saímos de um concerto.
- Julio Cortázar [confirmando que há crimes demasiado perfeitos]
Etiquetas: Júlio Cortázar
404
Voltando atrás para olhar o futuro. Trazer de volta o exercício do esquecimento, os antídotos da desilusão, a receita inversa à troca, à rejeição. De novo, rasgamos os planos e traçamos novos destinos, esculpidos em pedra feita dos escombros da memória e da experiência da repetição. Sentados, procuramos nos manuais, outras fórmulas de futuro que evitem mais ruínas, que impeçam enganos, que ensinem a manter-nos afastados de falsa coragem, de pequenos carácteres que se entranham no nosso ser. Regressamos ao ponto de partida dispostos a voltarmos a ser esfaqueados uma e outra sem que nos lembremos das horas longas em que decorámos os compêndios dedicados a uma vida sem dor.
Três fósforos... um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços
- Jacques Prévert
Etiquetas: Jacques Prévert
1/07/2011
403
Não há outra forma de o dizer: Estou em baixo, bem mais baixo do que me lembro de alguma vez estar. Por isso, vou fazer sinais mais discretos, mais escuros, agora apenas quero que eles cheguem ao Mundo e não ao degrau que me fez escorregar e cair...de novo.
O “Sinais”, segunda-feira, passa a ser por convite (nabokov_1@hotmail.com) até que me esqueça que o degrau que julgava faltar para chegar à luz tornou-se o degrau que me revelou que há mais escuro do que o escuro que conhecia. (Oldmirror)
Debruça-te para o interior do meu vazio. Nenhum rosto, nenhum pensamento, nenhum gesto inútil. Nenhum desejo - porque o desejo precisa de um rosto. E no lugar daquele que partiu acende-se a noite.
- Al Berto
Etiquetas: Al Berto
402
Nunca foi fácil a maior desilusão chegar-nos de quem mais amámos. Nunca foi fácil o falhanço resultar do maior dos investimentos. Nunca foi fácil morrermos pela mão de quem um dia ajudámos a renascer. Nunca foi fácil vencer a falta de coragem. Nunca foi fácil sentir que em nós a aposta não é de all-in. (Oldmirror)
para não te perderes pensas
em deixar marcas pelo caminho
guiar-te pelo barulho dos carros
todos os dias fazes a mala
e improvisas mapas com o lápis
viagens para o muito longe
mas continuas sentada na sala
e os únicos caminhos
são rastos de migalhas e lágrimas
é à sua sombra
que vais continuar a usar o lápis vermelho
e as árvores lá fora
são apenas pontos sem nome
marcados a verde no mapa
- Maria Sousa
Etiquetas: Maria Sousa
1/01/2011
401
Na passagem do ano como no que resta dos dias, os estranhos somos cada vez mais nós. (Oldmirror)
Segundo um mito urbano, na noite da passagem do ano as pessoas desatam a beijar estranhos na boca. Isso nunca me aconteceu. Curiosamente, o que sucedeu foi o contrário: percebi que as pessoas que beijei na boca me eram, afinal, completamente estranhas.
- Ouriquense