4/28/2011

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As palavras podem matar, uma arma também. No entanto, serão poucas as mortes mais dolorosas do que as provocadas pelo silêncio resultante de uma fuga inesperada.
No incício é uma picada, rápida quase indolor, quase em simultâneo segue-se uma invasão incómoda do corpo que, ainda quente, quase se recusa a interpretar a estranha sensação. Uma facada no peito dói bem menos do que um voltar de costas.
Sentimo-nos tatuados, marcados para sempre. Não há banho que apague o que as lágrimas também não conseguiram. Não há tempo que nos ofereça verdadeira redenção. Não há sonhos que nos deixem olhar com outro olhar para as cinzas provocadas por incendiários da alma.
Há assasínios mais mortais do que outros. Há mortes mais definitivas do que outras. Há finais não agendados mais delicerantes do que a própria morte.
Dezenas de imagens, centenas de frases, milhares de palavras e um número incontável de sentimentos retorcidos e misturados num imperfeito "shaker". Sentado demasiadas horas abraçando as pernas e olhando em frente. Sem qualquer gesto ou reacção, o corpo vai-se esvaziando. A vertigem é avassaladora. A estonteante velocidade interior contrasta com a imobilidade exterior. Em breve será apenas corpo. Um corpo dorido, tatuado, esvaziado, incendiado, esfaquiado e deixado vivo para servir de exemplo aos que um dia fiquem tentados a atirar todas as fichas para cima de uma só mesa sem ponderarem se ela aguentaria todo o peso ou se por fraqueza e cobardia acabaria por ceder. (Oldmirror)

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
- Luís Vaz de Camões

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4/19/2011

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Quando o carinho é evocado como o maior dos sentimentos, surge a certeza de que é o embaraço e até o desprezo que levam à evocação e não a nobreza que o adjectivo encerra por si só. (Oldmirror)

A noite deixou-me outra vez transtornada
lentamente a manhã se enche
de palavras que eu sei de certeza
que significavam alguma coisa, mas o quê?
que ontem significavam alguma coisa.
Andar é balançar sobre os pés,
vejo na rua os seres de sangue quente
que tiveram também a inexplicável coragem
de se levantarem
em vez de ficarem deitados.
Nunca ninguém tem a certeza de nada,
de ser amado, de ser abandonado
tudo é possível e tudo é permitido
tudo sucede em alternância.
Agora me lembro o que queria dizer:
enquanto isso não trouxer infelicidade
é uma sensação agradável. Mas no fundo
somos doces como Turkish Delight
numa lata cheia de pregos.
- Judith Herzberg

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4/18/2011

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falhámos tudo: entregámos os livros

ao sepulcro das estantes, ao amor

demos um colo de horas certas,

deixámos de abrir janelas

para cheirar a noite.

já nada nos lembra

que o poema só se forma

no fio da navalha.

- Renata Correia Botelho (mergulhada no arrozal)


Numa violenta hipotermia emocional acresce a certeza que os cobertores estão todos indisponíveis até porque habitualmente só abundam pela Primavera e pelo Verão. Sempre que faz frio, sempre que o escuro é ainda mais escuro, preferem recolher ao conforto dos seus armários onde, comodamente, podem dizer que não viram e não ouviram. As desistências são mais vergonhosas que as imperfeições. E a nudez persistirá enquanto o Inverno e a noite vão plantando sementes. (Oldmirror)

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4/12/2011

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Atinge-me, de uma vez por todas! (Oldmirror)

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De braços caídos, olhando em redor confirmando a encruzilhada de becos sem saída, dava por si com a certeza de que chegara ao fim da linha. Com algumas pontas soltas, umas maiores que outras, tornava-se óbvio que, para além delas, de pouco valeria a permanência. A verdadeira dúvida era a melhor forma de permanecer enquanto isso fosse um imperativo e até aí a encruzilhada mudava de formato. (Oldmirror)

Olho para o papel branco (afinal um tudo-nada pardacento) sem a angústia de que falava Gauguin (ou era Van Gogh?) ao ver-se em frente da tela, mas apreensivo, apesar de tudo. Que vou eu escrever - eu, a quem nada neste mundo obriga a escrever? Eu, antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas que neste momento ainda não redigi, dentro de alguns minutos (de alguns anos) finalmente redigidas?

Não sei: folheio ao acaso a página cento e quinze do meu caderno, ainda branca, ainda parda, e pergunto-me: daqui a dois, a três, a quatro meses, quando a alcançar - se a alcançar - , terei escrito uns milhares de palavras. Que palavras?

- Augusto Abelaira

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