6/30/2010
6/27/2010
386
De nada adianta abrir as janelas procurando a luz se o sol não existe lá fora. De pouco vale escolhermos tinta branca para pintar o negro da vida se o pincel não tocar a tela. Serão inúteis os efeitos especiais se o actor é naturalmente mau. Neste filme não há 'second chances' e os beijos resumem-se a escassos e gélidos 'bytes'. Não há 'reboots', 'restarts' ou 'reloads'. Neste filme, subsiste o 'freezed-frame'. Esqueça-se a liberdade, pois é a mesma do primata de cativeiro indiferente à porta aberta da jaula. Permanece. Indiferente. 'Hobby'? 'Flashback' em 'super-slow motion' onde, graças aos avanços da memória, numa exibição 3D, ainda é possível sentir o calor de uma pele ao mesmo tempo que o arrepio se dá. Quando abandonar o primeiro balcão fica a promessa de não utilizar qualquer duplo. Está aberto o 'casting' para contracenas! (Oldmirror)
só já sinto a vontade de sentir que tu sentes há tanto tempo. tempo perdido de todo um sentimento sem sentido nem direcção sem saber se o que se sente vem do fundo do coração que se abate bate amassa. não beijes de boca fechada. abre as letras às palavras que te escorregam na língua. sente_te de vez em quando sente_te sente_te sente_te. senta_te e deixa sentir_te. a verdade é nua. crua. chega a doer a fazer ferida. a mentira és tu. doce. suave. impossível ficar indiferente à tua pessoa ao não querer ser não querer estar não querer. já não consegues chocar nada. o choque és tu. por aqui há gente. gente que te lê. que te sente como tanto tu querias sentir. aprende_te de novo inicia_te apaga a página vira a folha não dês título. não numeres. enamora_te. recomeça_te. não te derives. rima_te. afoga a memória num mar de vinho. lança_te ao rio. vem ter contigo. não há portas. não há chaves. não há nada. estás aí?
- Ivone
6/19/2010
385
Morreste sem que me convencesses. Espero ser convencido antes de morrer.
Se o for, dir-te-ei quando chegar. (Oldmirror)
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
- José Saramago
Etiquetas: José Saramago
6/17/2010
384
Vou fechar os olhos e contar lentamente até dez milhões. Quando os abrir espero finalmente ver. (Oldmirror)
Ela volta a fechar os olhos; as palavras não atravessam o seu sonho. Esse sonho pesado onde borbulha um sangue violáceo e que eu não posso sonhar. Não. Não voltes a adormecer. Acorda já, acorda para sempre. Ela abriu os olhos, abriu os lábios, estava de novo perto de mim e eu não soube guardá-la. Era preciso penetrar à força e em cheio no seu coração, rasgar os nevoeiros, e obrigá-la a escutar-me, suplicar-lhe: permanece viva, volta para mim. Volta; ainda ontem era tão fácil. As mãos pousadas no volante, olhavas o céu, dizias: que bela noite. Uma noite demasiado bela, tão suave. Sorrias: voltarei. Nunca mais voltarei a ver o teu sorriso. Dir-se-ia que o seu lábio se tornou demasiado curto, aparecem-lhe os dentes e tem as narinas comprimidas; na sua carne viva, há já um cadáver que se modela. É preciso fechar os olhos, esquecer esta máscara de morte; amanhã já não serei capaz, já só verei a máscara. «Voltarei.» Deveria ter lançado os braços à tua volta e não os abrir mais: não te vás embora; amo-te, fica comigo. Ouviste estas palavras e partiste; eu deveria tê-las gritado mais alto. Amo-te. Agora eu falo e tu não ouves. Escutavas-me tão apaixonadamente: e eu calava-me. Será que não voltaremos nunca para trás, em nenhuma vida? Ela está ali tão próxima (...)
- Simone de Beauvoir
Etiquetas: Simone de Beauvoir
6/02/2010
383
UM DUELO COM O SOLENE ACTO DE VIVER
"Somos conduzidos para um mundo de poesia impossível de descrever com palavras"
Morreu parte da pele que adoptei. Parte do coração que ainda bate. Hoje morri ainda mais. (Oldmirror)
Sempre que começo o Butoh, sinto uma hesitação, por não saber por onde começar. Mesmo quando pensamos sobre o que é "viver", vemos que normalmente o Butoh processa-se num inter-relacionamento de duas atitudes, aparentemente opostas, que coexistem: a humanista, baseada em amor profundo e altos ideais; a realista, fundamentada nos desejos e necessidades mais directas. Penso que o Butoh não teria existência própria, se o separássemos do acto de viver. Mas, por mais que se diga isso, não consigo deixar de hesitar todas as vezes que deparo com a questão: por onde começar? Começo sem sentir que essa hesitação significaria negar, sob um aspecto, o viver. Só posso concluir que é exactamente nesse processo denso da vida e nas situações de hesitação que está o real começar do Butoh. O Butoh começa nos movimentos quotidianos do corpo. Quando aparece alguém a querer fazer Butoh, digo sempre que isso levaria pelo menos cinco anos. Durante esse período, a aprendizagem realiza-se criando bases e não se sabe se na constante consciencialização da análise e síntese dos movimentos do próprio corpo ou se no aprofundamento do conhecimento sobre o processo de viver, se em nenhum dos dois ou em ambos.
A sabedoria de viver, o respeito à vida, tanto de si como a de outros, o reconhecimento da Natureza, são temas que vão surgindo no processo do aprendizagem. As dores de uma existência ou então os seus prazeres, os sofrimentos que marcam as nossas próprias vidas, as dádivas da Natureza e a sua destruição são para mim, fenómenos especialmente caros. Os ferimentos que recebemos nos nossos corpos cicatrizam e curam-se com o tempo. Os ferimentos que recebemos no nosso âmago, se aceites e contemporizados, farão nascer, ao longo dos anos e das experiências, alegrias ou tristeza que, um dia, nos conduzirão para um mundo de poesia, impossível de expressar por palavras, só por meio do nosso próprio corpo. Em matéria de se ensinar o Butoh, existem coisas que podem ser ensinadas e outras que não. Suponhamos que estivéssemos dando lições/aulas com o tema "Pai Nosso". Cada um de tentaria expressar, através do corpo, todos os movimentos que o tema lhes inspiraria. E eu compreenderia-os todos, por menores que fossem. Mas o problema começaria dali em diante.
Para mim, dançar com o único objetivo de fazer os outros entenderem as imagens que o tema evoca é apenas uma questão anterior ao Butoh; o problema encontra-se daí para frente. O importante é a postura diante da vida e dos sentimentos que decorrerem do processo vivencial, contidos nas verdades do "Pai Nosso". Além disso, a seriedade do viver e de como se vão confrontar com esse problema, constitui o aspecto mais importante. E sobre isso nada posso ensinar-lhes. É preciso que cada um faça uma reflexão. Na minha opinião, devem procurar no Butoh uma oportunidade para travar um duelo consciente com o solene acto de viver. Disse, antes, que levaria pelo menos cinco anos para aprender o Butoh. Nos simples movimentos que se ensinam nestes primeiros anos e também nos procedimentos do dia-a-dia já se incluem, com certeza, essas coisas que disse, que são impossíveis de se ensinar e de se descrever por palavras.
- Kazuo Ohno
"Somos conduzidos para um mundo de poesia impossível de descrever com palavras"
Morreu parte da pele que adoptei. Parte do coração que ainda bate. Hoje morri ainda mais. (Oldmirror)
Sempre que começo o Butoh, sinto uma hesitação, por não saber por onde começar. Mesmo quando pensamos sobre o que é "viver", vemos que normalmente o Butoh processa-se num inter-relacionamento de duas atitudes, aparentemente opostas, que coexistem: a humanista, baseada em amor profundo e altos ideais; a realista, fundamentada nos desejos e necessidades mais directas. Penso que o Butoh não teria existência própria, se o separássemos do acto de viver. Mas, por mais que se diga isso, não consigo deixar de hesitar todas as vezes que deparo com a questão: por onde começar? Começo sem sentir que essa hesitação significaria negar, sob um aspecto, o viver. Só posso concluir que é exactamente nesse processo denso da vida e nas situações de hesitação que está o real começar do Butoh. O Butoh começa nos movimentos quotidianos do corpo. Quando aparece alguém a querer fazer Butoh, digo sempre que isso levaria pelo menos cinco anos. Durante esse período, a aprendizagem realiza-se criando bases e não se sabe se na constante consciencialização da análise e síntese dos movimentos do próprio corpo ou se no aprofundamento do conhecimento sobre o processo de viver, se em nenhum dos dois ou em ambos.
A sabedoria de viver, o respeito à vida, tanto de si como a de outros, o reconhecimento da Natureza, são temas que vão surgindo no processo do aprendizagem. As dores de uma existência ou então os seus prazeres, os sofrimentos que marcam as nossas próprias vidas, as dádivas da Natureza e a sua destruição são para mim, fenómenos especialmente caros. Os ferimentos que recebemos nos nossos corpos cicatrizam e curam-se com o tempo. Os ferimentos que recebemos no nosso âmago, se aceites e contemporizados, farão nascer, ao longo dos anos e das experiências, alegrias ou tristeza que, um dia, nos conduzirão para um mundo de poesia, impossível de expressar por palavras, só por meio do nosso próprio corpo. Em matéria de se ensinar o Butoh, existem coisas que podem ser ensinadas e outras que não. Suponhamos que estivéssemos dando lições/aulas com o tema "Pai Nosso". Cada um de tentaria expressar, através do corpo, todos os movimentos que o tema lhes inspiraria. E eu compreenderia-os todos, por menores que fossem. Mas o problema começaria dali em diante.
Para mim, dançar com o único objetivo de fazer os outros entenderem as imagens que o tema evoca é apenas uma questão anterior ao Butoh; o problema encontra-se daí para frente. O importante é a postura diante da vida e dos sentimentos que decorrerem do processo vivencial, contidos nas verdades do "Pai Nosso". Além disso, a seriedade do viver e de como se vão confrontar com esse problema, constitui o aspecto mais importante. E sobre isso nada posso ensinar-lhes. É preciso que cada um faça uma reflexão. Na minha opinião, devem procurar no Butoh uma oportunidade para travar um duelo consciente com o solene acto de viver. Disse, antes, que levaria pelo menos cinco anos para aprender o Butoh. Nos simples movimentos que se ensinam nestes primeiros anos e também nos procedimentos do dia-a-dia já se incluem, com certeza, essas coisas que disse, que são impossíveis de se ensinar e de se descrever por palavras.
- Kazuo Ohno
Etiquetas: Kazuo Ohno