A água estava demasiado fria, mas isso pouco importaria, também a sua vida fora passada com o gelo entranhado até aos ossos e aquela banheira era agora a derradeira estrada para que o que restava da sua existência conhecesse por uns segundos o significado da palavra morna. Não conseguia escolher se o faria com água tépida ou simplesmente deixaria que ambas as torneiras se tornassem ajudantes do percurso que em breve faria. Sem entender bem porquê a sua memória entretia-se com os pormenores da cerimónia muito mais do que com a decisão que tomara naquele dia em que pela enésima vez ficara a velar as velas ardendo na mesa onde apenas um prato fora utilizado apesar de outro ter sido colocado. Naquele dia onde Parker tocou até à exaustão no concerto que deveria ter sido o mais pequeno do mundo quando fora contratado para o mais intimista do mundo. Naquele dia em que apesar de tudo já sabia que seria o nada que restaria preenchendo tudo. A água corria sem hesitações, decidida, tão decidia quanto ela na procura do derradeiro calor que a deixaria por fim com a desconhecida sensação de aconchego. Ela entrou na banheira. Primeiro os pés, depois as pernas, o tronco. Reclinou-se e sentiu de novo o frio na nuca. A água estava demasiado fria. A luz já não era das velas que arderam vezes naquele local sempre que decidira esperar ao som dos ncturnos de Chopin pela chegada de quem nunca chegava. A água já transbordava e tornava o chão da casa de banho numa extensão do caminho que decidira precorrer. Tinha pensado entrar nua, da mesma forma com que se deitara nos lençóis de linho preto que cobriam a cama onde demasiadas vezes do lado esquerdo sem que o direito tivesse sido preenchido por quem não sujara o prato nem fizera a água transbordar da banheira, apagando as velas e acompanhado Chopin. Mas acabou por entrar vestida de vermelho, a cor do pecado que gostaria de ter cometido. A água estava demasiado fria. Os ossos pareciam ceder como ela cedera quando aceitara a proposta de partilhar uma vida com quem acabou por nunca reclamar por inteiro o quinhão que lhe estava reservado. Ali estava, olhando o tecto, olhando a ponta dos dedos dos pés e a maquilhagem escura decorando-lhe, agora, o peito e a face. Olhou para a porta fechada, talvez fosse mais a força do hábito do que a esperança que ela se abrisse e que desta vez os braços a rodeassem e a levantassem. Mergulhou. Manteve os olhos abertos e não deixou de reparar que a falta de nitidez que agora sentia pouco era diferente daquela com que sempre olhara em seu redor quando a água não estava lá. A falta de nitidez que agora sentia pouco diferente era daquela que tantas vezes lhe surgia quando os seus olhos ficavam marejados de lágrimas todas elas com a mesma inicial. E mesmo nessa altura o caminho que começava a precorrer parecia-lhe menos importante do que saber se deveria abrir ou manter a boca fechada, se deveria abdicar do ar que guardara ou se o libertaria para escolher o seu destino. Faltava um segundo apenas, gastou-o com a última coisa que lhe viria à memória: a água estava gelada e nem agora conseguira sentir o calor que procurara. (Oldmirror)
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A estrela choveu rosa no coração da tua escuta,
o infinito rolou alvo no teu corpo, da nuca aos rins,
o mar orvalhou ruivo os teus seios de rubro cobre
e o homem sangrou negro no teu flanco sem fim.
- Arthur Rimbaud
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