11/30/2007

220


Foi com a mesma boca que te beijara que te pedi para voltar. Com a boca que deixara escapar promessas de nada prometer que te pedi para devolveres os pedaços a que chamamos momentos e que levaste contigo no dia em que deixaste de suportar a dor de um quarto onde tudo se ia passar e apenas se passou um breve começo. É a boca que substituiu o olhar na aprendizagem do teu corpo que agora permanece seca pelo Inverno que se instalou desde que deixou de reconhecer o sabor da tua boca. (Oldmirror)
 
A verdade é que já há muito que eu desistira de esperar. O momento já tinha passado, a porta entre as vidas que podíamos ter levado e as vidas que levávamos tinha-se fechado nas nossas caras. Ou melhor, na minha cara. Regra elementar na gramática da minha vida: onde quer que aparecer o plural, corrigir para singular.
- Nicole Krauss

Etiquetas:

11/20/2007

219



Era o frio que sentia a entrar nos lençóis pretos quando a noite dava lugar ao dia que repetidamente davam o aviso: saíra antes de acordar. O hábito da fuga repetida era proporcional ao sonho com que encerrava a cerimónia da carne marinada pelo álcool, pelo tabaco e pelo suor com que alimentava o vício de recusar a solidão. Sonhava que acordaria sem que, por uma vez, os sinais de que naquela tinha existido vida não se resumiam ao cinzeiro a transbordar, ao whisky vertido nas páginas de um livro de Auden, ao bilhete de despedida ou à peça de roupa esquecida. Sonhava que os sinais de vida seriam, um dia, um corpo morno e cansado de onde escapava uma respiração profunda de prazer indefeso. (Oldmirror)

A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
- Luís Miguel Nava

Etiquetas:

11/14/2007

218


Sem voos rasantes por falta de coragem iam pairando um no outro, olhando de longe sem palavras trocadas mas com sinais de eternidades. Aprenderam a comunicar pelo vento, pela folha caída, pela vírgula mal posta. Inventaram a proximidade pelo olhar trocado em cadeia que completava a viagem num gesto inocente do empregado do café ou no som saído do rádio colocado na banca da fruta do mercado visitado. Por vezes chegavam mesmo a beijar-se, demoradamente, quando um impulso os levava a sentarem-se num banco de jardim, ou a inspirar o aroma do chá verde que fumega na chávena ao lado. Mas havia algo que nunca mais conseguiram fazer. Nem mesmo quando as lágrimas vertiam e davam uma nova pontuação ao livro de Whitman embalado pelo gemido de Billy Prince. Nunca conseguiram de novo o abraço. Nunca conseguiram de novo a pele. A distância necessária e suportável, a ausência das palavras, dos afectos secretos e a proximidade inventada pela magia daquela improvável ligação tornavam-se então duros objectos de tortura a fazerem as delícias de dois masoquistas por necessidade. (Oldmirror)

Eram um homem e uma mulher e falavam. E o que diziam, ou o que a mulher dizia, era a tentativa de um diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de amor que se trava, ao nível do corpo, entre uma mulher e um homem. Ela procurava uma forma de encontro, através das palavras, um encontro que era, antes de mais, consigo própria, e só depois com o homem que escutava. Ou era apenas um jogo de palavras? Hesitou de repente, sem ver claro. Em algum lugar, é verdade, a falsidade começava. Talvez porque a mulher imaginada pressentia que o homem estava parcialmente fora do diálogo e lhe resistia, como se ele representasse, de certo modo, um perigo, e se pudesse finalmente converter numa agressão contra ele próprio. Talvez por medo, sim (pensou), o homem recusasse participar e levar a sério o que a mulher contava, aceitava-o apenas como um passatempo, compreensível numa praia em que todas as horas eram iguais e vazias. Ele estabelecera, portanto, limites tácitos a todas as palavras, verificou, e, se a mulher que falava tentasse ultrapassá-los, ele obrigá-la-ia a retroceder e a alegar que estava mentindo.A mulher imaginada escolhera assim primeiro grandes palavras abertas, como céu, mar, ponte, barco, estrada, rio, palavras que ofereciam espaços livres, onde a forma dela própria podia sempre perder-se de vista facilmente, no meio de uma infinidade de outras coisas. Mas a pouco e pouco, insidiosamente, fora-se aproximando de um espaço limitado, concentrado em torno dela mesma, e era aí que o diálogo começava a adquirir a tensão que ela secretamente procurava(...)
- Teolinda Gersão

Etiquetas:

11/13/2007

217



Chegara ao fundo da rua como se tivesse chegado ao fim do Mundo. Chegara num passo lento e pesaroso, como se o fim da rua fosse o fim da vida, o beco sem saída onde apenas regressar para trás lhe parecia o mais provável. Parou. Olhou demoradamente o parede fria e indiferente. Sentou-se. Demorou uma nova vida sem desviar o olhar. Pela cabeça tudo lhe passou. Pela cabeça a insistente ideia de que aquela caminhada pela rua inclinada de onde sabia não haver saída antes mesmo do primeiro passo fora algo que decidira fazer numa desesperada tentativa de mudar o curso daqueles molhados e escorregadios paralelos. Sentia frio. Mas olhava a parede. Sentia que estava na hora de voltar as costas e caminhar de volta. Ao mesmo tempo sentia que poderia ali ficar para sempre, até que a parede passasse a ser apenas mais uma peça quase verdadeira de um dos seus sonhos que há muito começaram a ganhar vida própria a arriscarem a fuga para a realidade. Ouvia o tempo a esgotar-se, no entanto, não conseguia mover um músculo. Recordava o jogo que o arruinara, apostando sempre no vermelho enquanto só o preto surgia. Apostara tudo no vermelho com medo que se apostasse no preto a carta que mostraria o rosto fosse a anterior. Saiu derrotado. Agora frente à parede tinha decidido não sair da mesma forma, e assim não moveria um músculo. Deitou-se e de relance reparou no buraco de esgoto por onde corria a água que antes lhe precorrera o corpo. (Oldmirror)

Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?
Eis a grande raiva!
Misturam-na com as rosas
e chamam-lhe vida.
- José Gomes Ferreira

Etiquetas:

11/05/2007

216


Haverá ainda tempo para o chocolate quente, a manta dividida no telhado onde as estrelas nos esperam, a casa povoada de livros e discos gastos pelas noites de chuva onde o refúgio que nos resta é feito do calor das peles que não nos cansamos de colar uma à outra? Haverá ainda tempo para que possamos gastar a eternidade que conquistamos a olharmos ainda incrédulos para um olhar que nos pertence e que nunca soubémos entender como surgiu mas sempre soubemos que existiu? Ao som de Keith, ao som do Koln Concert, invento-te ao cair da tarde peço-te de volta (Oldmirror)

Se querem saber a verdade, não sei o que hei-de pensar. Lamento ter contado isto a tanta gente. O que sei é que tenho como que saudades de toda a gente de quem falei. Mesmo do amigo Stradlater e do Ackley, por exemplo. Acho que até do cabrão do Maurice tenho saudades. É esquisito. Nunca contem nada a ninguém. Se contam, acabam por ter saudades de toda a gente.
- JD Salinger

Etiquetas:

Estou no blog.com.pt - comunidade de bloggers em língua portuguesa
Oldmirror© 2005-2011 All Rights Reserved.