6/27/2006

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Entrámos na cama como no campo de batalha. A guerra vence-a quem mais tocar, quem mais amar, quem baixar a guarda e não pedir a protecção dos deuses. Num castelo erguido com os lençóis negros que esperam os brancos despojos de uma luta sem tréguas, combatemos de olhos fechados e sentimos prazer nas marcas que deixámos. Recusámos as armas e defrontamo-nos de mãos nuas, prescindimos de armaduras e nus caímos voluntariamente na arena. Estavamos decididos a morrer ali mesmo já sem forças para seguir em frente, já sem fôlego para o que quer que seja. A estocada final mata-nos aos dois e, abraçados, gelados pelo suor que começa a esfriar, sentimo-nos mortos, sentimo-nos vivos. (Oldmirror)

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6/26/2006

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[Oldmirror.Coliseu.Porto.05]

Há momentos que nos visitam no interior. Há momentos em que o nosso interior é revelado. Há momentos em que o que somos no interior pode ser visto. Momentos que não são momentos, somos nós. Numa viagem ao meu interior, com sons, cores e imagens, num momento em que o que se vê nada mais é do que aquilo que me habita. Eu sou aquilo, nada mais. (Oldmirror)

6/23/2006

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Tentava, tentava desesperadamente remendar os buracos feitos pelo tempo. Passava horas tentando encontrar o ponto ideal para fechar aquele vazio, mas nunca conseguira. Os dedos picados em ferida, a alma fugida e as lágrimas, as lágrimas eram as grandes culpadas, embaciavam-lhe os olhos que assim se enganavam. Os remendos nunca eram suficientes, nunca iriam substituir o pedaço que ali esteve e que se gastou, rasgou, acabou. De pedaço em pedaço, ali, sem desviar os olhos para o lado, tentando não perder tempo, a vida ia-se esgotando, a vida ia fugindo pelo buraco onde ainda não havia remendo que tapasse, nem linhas que o unisse. Por vezes, lembrava-se que houve um tempo em que não era preciso tapar o buraco, porque ele não existia, por vezes, lembrava-se que antes de se sentir esvaziar lentamente, antes de ver a vida escorrer-lhe por onde a alma já saíra há muito, havia um peito aberto onde todos podiam ver um coração bater...inteiro. (Oldmirror)

Nem sempre sou igual ao que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem em mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...

- Alberto Caeiro

6/21/2006

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Ao acordar, sem explicação, mergulha no Teorema. Nunca gostou de matemática, a sua relação com os números sempre foi fria e propositadamente distante. Mas naquele dia, uma saudade avassaladora fê-lo procurar conforto nos números para chegar à conclusão que nunca deixara de amar quem um dia o fez olhar para as reflexões de Gödel como se de Rilke se tratasse. Fica horas olhando assustado para os números que lhe surgem como versos, fica horas a tentar decifrar porque é que nunca conseguiu esquecer, ainda que inconscientemente, a geografia, nem sempre errática, de um amor que nunca chegara a acontecer porque a soma das partes nem sempre faz um todo e um todo pode muito bem ser muito menos que a soma das partes. (Oldmirror)

...qualquer sistema matemático axiomático, suficiente para incluir a aritmética dos números naturais, necessariamente, não pode ser simultaneamente completo e consistente. Se o sistema é consistente, sua consistência não pode ser provada internamente ao sistema...

- Gödel

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Não entendem nada, os parvos. Não conseguem ver que é preciso pouco para que que a felicidade nos habite. Aquela mania de predadores que os cega para sempre impede-os de sentirem um pouco mais, de saberem a que sabe a eternidade, de saberem de que cor se pinta um toque cúmplice. Não entendem que é preciso pouco, é preciso apenas ficar o tempo suficiente, é preciso apenas estar. (Oldmirror)

Achava que não podia ser magoada;
achava que com certeza era
imune ao sofrimento -
imune às dores do espírito
ou à agonia.
Meu mundo tinha o calor do sol de abril
Meus pensamentos, salpicados de verde e ouro.
Minha alma em êxtase, ainda assim
conheceu a dor suave e aguda que só o prazer
pode conter.
Minha alma planava sobre as gaivotas
que, ofegantes, tão alto se lançando,
lá no topo pareciam roçar suas asas
farfalhantes no tecto azul
do céu.
(Como é frágil o coração humano -um latejar, um frémito -
um frágil, luzente instrumento
de cristal que chora
ou canta.)
Então de súbito meu mundo escureceu
E as trevas encobriram minha alegria.
Restou uma ausência triste e doída
Onde mãos sem cuidado tocara
me destruíram
minha teia prateada de felicidade.
As mãos estacaram, atónitas.
Mãos que me amavam, choraram ao ver
os destroços do meu firmamento.
(Como é frágil o coração humano -
espelhado poço de pensamentos.
Tão profundo e trémulo instrumento
de vidro, que canta
ou chora.)

- Sylvia Plath

6/20/2006

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Uma vez mais levanto-me sozinha. Lentamente. Uma vez mais o lado direito da cama mantém-se intacto, sem o cheiro forte da sua presença, sem os gestos largos do seu corpo, sem a cadência do seu respirar. Uma vez mais acordo sem que me acordem. Acordo sem acordar ninguém. Uma vez mais apenas imaginei como seria deixar-me estar deste lado, quieta, apenas guardando o seu sono. Apenas imaginei o seu sorriso. Apenas imaginei a noite e o calor do corpo que me faria sentir o fresco dos lençóis. Uma vez mais só o calor da água do banho que tomarei sozinha me fará imaginar o banho a dois onde a água morna se torna mero adorno. A vida que exigi roubou-me os momentos oferecidos e o lado direito da cama manteve-se intacto. A tranquilidade que pedi apagou o sobressalto da presença inesperada e o lado esquerdo do meu peito manteve-se vazio. (Oldmirror)

São tantos os silêncios da fala
De sede
De saliva
De suor
Silêncios de silex no corpo do silêncio
Silêncios de vento de mar e de torpor
De amor
Depois, há as jarras com rosas de silêncio
Os gemidos nas camas
As ancas
O sabor
O silêncio que posto em cima do silêncio usurpa do silêncio o seu magro labor.

- Maria Teresa Horta

6/19/2006

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Tentava escrever ao ritmo crescente da cinza na ponta do cigarro mas aquilo que havia para dizer era bem menos que o tabaco que alimentava o fumo que me ia escapando por entre os dedos amarelecidos de tanto insistir em explicar o que me estava entranhado bem perto dos pulmões. Aos apelos de uma luz, apagavam-se os candeeiros da sala e pela porta já não conseguia perder-me na visão de um corpo movendo-se ao som de uma história que sabia não ir repetir-se. Os gestos lentos das mãos que acariciavam os cabelos e sentiam a pele do rosto eram apenas mais um pedaço de filme que nunca chegaria a ser editado, um pedaço de filme igual ao que já fora feito antes e que juntara os rostos, as peles, os cabelos, as mãos, os corpos, os lençóis e o mundo inteiro num único fotograma fixado para sempre. (Oldmirror)

Queres um cigarro? Eu vou fumar um. Acendo-os agora como tu me ensinaste, com um fósforo grande, deixando que arda durante um bocado até que o sulfato se consuma completamente e não estrague o sabor do tabaco...
...não é fácil, eu sei. Hás-de ter sentido a falta de qualquer coisa, da humanidade de um som que te fizesse descer à terra, do calor que a minha voz não tinha. Eu sei. Ninguém vive só de amor e muito menos de um amor quase ausente. Eu sei, eu sei que é estranho este meu modo de ser e de te dizer, em silêncio, que te amo.

- Manuel Jorge Marmelo

6/14/2006

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Não arrumes os lençóis
deixa-os como estão.
Estarão moldados ao teu corpo
e terão forma do meu.
Não despejes o cinzeiro
porque ainda o usaremos.
Um dia não chegará
para te mostrar onde podemos chegar.
5 segundos não são suficientes
para que sintas o que senti.
Não encerres o olhar
como se o ponto já estivesse no sítio,
e a vírgula nunca existisse.
Só paramos,
só recuperamos
só esperamos que a vida
nos devolva a chave da porta
onde está o único ar respirável...o nosso.
(Oldmirror.05 - "#1206")

Já tenho problemas suficientes ao tentar ser um homem. Antes, a questão era descobrir se a vida precisava de ter algum significado para ser vivida. Agora, ao contrário, ficou evidente que ela será vivida melhor se não tiver significado.

- Albert Camus

6/12/2006

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Enquanto havia o silêncio e a .ausência. era possível o toque discreto de quem não consegue fechar a porta, de quem sabe que ficou bem mais fundo do que na simples memória o tempo em que o silêncio e a .ausência. foram quebrados para dar lugar à existência. Agora da existência que alguém escolheu matar restam os sinais e o silêncio, não a .ausência. (Oldmirror)

Por sobre os grandes vales, sobre os pantanais,
As montanhas, as nuvens, os mares, as florestas,
Para lá deste sol, para além da atmosfera,
Para lá dos confins das esferas astrais,
Tu moves-te, meu espírito, com agilidade,

E, qual bom nadador deleitado nas ondas,
Sulcas alegremente a imensidão profunda
Com a tua viril voluptuosidade.
Voa para bem longe dos mórbidos miasmas;

Tenta purificar-te no ar superior
E bebe, como um puro e divino licor,
O branco fogo que enche os límpidos espaços.
Por trás destes desgostos e aborrecimentos

Que nos sobrecarregam a vida brumosa,
Feliz de quem consegue, de asas vigorosas,
lançar-se pelos campos claros e serenos;
Aquele cujo pensar é como a cotovia,

Rumo ao céu de manhã, tomando o seu impulso,
- Quem paira sobre a vida e sem esforço decifra
A linguagem das flores e de outras coisas mudas!

- Charles Baudelaire

6/07/2006

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Sem imagens, apenas música. Afundado na música procurando rever o que foi, tentando adivinhar o que irá ser, lamentando o que poderia ter sido. Som após som, voz após voz, o escuro dos olhos cerrados vai deixando entrar a luz disfarçada de agudos e graves, de pianos e violoncelos. Vai deixando entrar o que ficou perdido sob a forma de uma guitarra e de palavras certas escolhidas por outros. A cada nota do contrabaixo, a cada gemido que escapa, um pedaço da história é recuperado ou atirado fora. Sem dificuldade criamos a banda sonora original de todos os filmes guardados cá dentro. Que música me ofereces? Que musica me escolhes? Que musica seríamos? Que música já foste? Que música ainda és? (Oldmirror)

Ficaram a entreolhar-se, como se cada um quisesse sorver com os olhos e guardar para sempre a imagem do outro. Havia coisas que ele precisava de lhe dizer antes de se despedirem, mas não podia dizê-las naquele lugar de recordações luminosas, de modo que deu meia volta, seguindo-a em silêncio...

- Edith Wharton

6/05/2006

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Que vista branco, que seja feliz, que fique para sempre, que sorria e ame. O meu coração não tem essa forma. Que partilhe o impartilhável, que aceite, que me mostre, que me deixe e não desista. O meu coração não tem essa forma. (Oldmirror)

Venho dormir junto de ti
e o meu corpo é uma coisa diferente
do que se vê ou toca ou sente;
é, fora de mim, essa coluna de ar onde respiro,
olhos que beijam o teu corpo exacto,
as muitas mãos que dobram o teu rosto.
Um deus que dorme, um deus que dança, e mais
que um mero deus, o breve amor do tempo.

- António Franco Alexandre
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