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I. Por vezes, precisamos da explosão da cor para podermos regressar ao preto e branco. Precisamos de levar o contador a zeros para que consigamos enganar a longevidade. É preciso recomeçar, recomeçar todos os dias, balançar ao som do ponteiro mais irrequieto que trazemos no relógio. Por vezes, só terminando é possível iniciar, sair do ponto morto e arrancar em primeira.
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II. Sentiu as costas húmidas, pequenos seres vivendo por baixo do seu corpo. Sentiu o sol queimar-lhe a pele. Ainda não saíra do estado que marca a fronteira entre o sono e o acordar. Habitualmente, era nesse momento que melhor sonhava. Seria aí que se encontrava? Passou em revista os últimos momentos antes do esquecimento, não se lembrava de muito mais para além dos lençóis pretos onde se enrroscara. De um pulo, sentou-se inspirando o ar do Mundo inteiro e abrindo os olhos de tal forma que cada pormenor num raio de quilómetros lhe ficaria gravado na memória. Adormecera na cama mas acabara de acordar num gigantesco relvado a céu aberto...muito aberto. Olhando em redor, procurava pontos de orientação que lhe explicassem o que acontecera entre a cama e a relva. Andou dias sem entender o que lhe acontecera, acabando por concluir que entre a cama de lençóis pretos e a relva verde e húmida, com formigas debaixo de si, haviam passado anos. Anos em que andara a dormir. (Oldmirror)
É preciso soltar o ritmo que me prende.
Esta amarra de ferro à palavra e ao som.
Emudecer, no espaço, o arco e a corrente
E ser nesta varanda um pouco só de cor.
Não saber se uma flor é mesmo uma criança.
Se um muro de jardim é proa de navio.
Se o monumento fala, se o monumento dança.
Se esta menina cega é uma estátua de frio.
Um pássaro que voa pode ser um perfume.
Uma vela no rio, um lenço no meu rosto.
Na tarde de Fevereiro estar um dia de Outubro.
Nos meus olhos de morta uma noite de Agosto.
É preciso soltar o ritmo das marés,
Das estações, do Amor, dos signos e das águas,
Os duendes das plantas, os génios dos rochedos
Nos cabelos do Vento, as tranças de arvoredos.
Desordenai-me, luz!
Que nada mais dependa
Das águas, das marés, dos signos e do Amor.
É preciso calar o arco e a corrente
E ser nesta varanda um pouco só de cor.
-Natércia Freire
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